Ir. Roselei Bertoldo
Escrevo a partir das experiências que tenho vivenciado nas comunidades, nesta imensa Amazônia, a gente percebe a importância das mulheres na dimensão do cuidado com a vida em todas as suas dimensões. No universo feminino a vida humana não é fragmentada, pois há uma interdependência entre todos os seres que habitam o mesmo espaço. Os territórios fazem parte da vida das mulheres, tudo está interligado.
Existem muitos aspectos que vão destruindo essa inter-relação e harmonia que faz possível o Bem Viver. Neste chão da Amazônia avançam brutalmente os grandes projetos, as mineradoras cada vez mais destruidoras, as empresas madeiras que desertifica a floresta, as hidroelétricas que extinguem a biodiversidade, inundando povos, culturas e florestas, aniquilando os sonhos da convivência com a Mãe Terra.
Neste contexto de degradação da vida, somos todos desafiados a aguçar o olhar para realidades aparentemente invisibilizadas, nocivas e que reforçam o patriarcalismo e o machismo numa sociedade que insiste em cultivar a cegueira. Não podemos continuar impassíveis diante de tantas situações de morte, manifestadas nas redes bem articuladas dos narcotraficantes, que aliciam cotidianamente crianças, adolescentes e jovens e os introduzem no mundo do crime em troca de ínfimas possibilidades de sobrevivência, o êxodo e a migração forçada, que na busca dos sonhos por uma vida melhor, caem na armadilha destas redes que se aproveitam das necessidades básicas, para tornarem famílias inteiras escravizadas.
A naturalização do abuso, exploração sexual de crianças e adolescentes, a crescente violência contra as mulheres, o extermínio das juventudes, a drogadição, o alcoolismo financiado pela indústria de entorpecentes, que atrofia a capacidade de empoderamento e autonomia das pessoas, são realidades que nos interpelam a tomar posição e agir.
A naturalização destas violências passa pelo cotidiano da vida das pessoas, e vai dando poder cada vez maior às redes criminosas, que se apresentam como possibilidade de um futuro melhor para quem de fato está caindo nas ciladas de um sistema de exploração e dominação.
Um outro aspecto que fica fora do olhar da sociedade e até mesmo da racionalidade, que submete o feminino a categorias secundárias, é o tráfico de pessoas, que vitima principalmente as mulheres, se convertendo na mais brutal de uma violência que muitas vezes começou na mais tenra infância, através do abuso e exploração sexual, que tem se naturalizado na Amazônia, igual tem acontecido com tantas outras violências.
A mercantilização do corpo e da corporalidade das mulheres, tratadas como mercadoria e objeto de exploração, tem se tornado um negócio lucrativo que se espalha através dos rios e estradas, até chegar nos cantos mais remotos da Amazônia, sem limite de fronteiras, e com a omissão e conivência das instituições que deveriam garantir o cuidado com as pessoas.
Nos processos formativos de prevenção ao tráfico de pessoas, desenvolvidos nas comunidades, aparecem muitos relatos que demonstram a inter-relação entre os crimes do tráfico de drogas, armas e pessoas. As pessoas conhecem, sabem que existe, mas não identificam o crime do tráfico de pessoas como uma realidade presente nesses locais, especialmente nas comunidades indígenas e ribeirinhas, que lentamente rouba os sonhos de uma juventude que busca uma vida melhor nas grandes cidades e que caem na armadilha do crime organizado.
Essa exploração, que perpassa a vida dos povos e da floresta, está inter-relacionada. Seguindo a lógica do capital, que explora e dilapida os recursos naturais, a vida das mulheres se vê submetida a esse mesmo processo de exploração. Sendo conscientes que são as mulheres quem mais e melhor cuidam da Casa Comum, como manifestam as pequenas iniciativas gestadas e nascidas nos grupos de mulheres e espalhadas por toda a Amazônia, ignorar esta exploração que elas sofrem, vai ter como consequência inevitável o fim do sistema que afiança o Bem Viver.
Garantir o cuidado com a Vida e promover o Bem Viver só vai ser possível na medida em que juntemos esforços e assumamos as causas de quem lida cada dia com esse propósito. Não é possível permanecer em processos que querem desassociar as realidades numa tentativa de implementar um sistema onde o individualismo provoca o enfraquecimento das lutas comuns.
O melhor cuidado é aquele que nasce de dentro da realidade. Só quem tem os pés e o coração neste sagrado chão amazônico é capaz de compreender, na sua profundeza, a inter-relação dos processos de vida que se dão, e revelam os muitos modos de entender a vida que aparecem nas diferentes comunidades amazônidas.
Aprendamos com essas mulheres, que cuidam do cotidiano da vida as tantas realidades que garantem o Bem Viver. Superemos relações de submissão e exploração, a partir de atitudes que possibilitem a tessitura de aprendizados, que transformem a vida e recriam novas possibilidades geradoras de esperanças.
Ir. Roselei Bertoldo
*Membro do Grupo de Mulheres da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil) e secretária executiva do Regional Norte I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Irmã Rose Bertoldo atua há mais de 10 anos na Amazônia. É religiosa da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria e integrante da Rede Um Grito Pela Vida.
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