JOÃO SALDANHA
“OLÉ” NASCEU NO MÉXICO
(Texto extraído do livro Os subterrâneos do Futebol, de João Saldanha, lançado em 1963 pela editora Tempo Brasileiro).
O Estádio Universitário ficou à cunha. Cem mil pessoas comprimidas para
assistir ao jogo. É muito alegre um jogo no México. É o país em que a
torcida mais se parece com a do Rio de Janeiro. Barulhenta, participa de
todos os lances da partida. Vários grupos de “mariaches” comparecem.
Estes grupos, que formam o que há de mais típico da música mexicana, são
constituídos de um ou dois “pistões” e clarins, dois ou três violões,
harpa (parecida com a das guaranias), violinos e marimbas. As marimbas
são completamente de madeira, mas não vão ao campo de futebol, sendo
substituídas por instrumentos pequenos. O ponto alto dos “mariaches” é a
turma do pistão, do clarim e o coro, naturalmente. No campo de futebol,
os grupos amadores de “mariaches” que comparecem ficam mais ativos em
dois momentos distintos: ou quando o jogo está muito bom e eles se
entusiasmam, ou, inversamente, quando o jogo está chato e eles “atacam”
músicas em tom gozador.
No jogo em que vencemos ao Toluca, que estava no segundo caso, os “mariaches” salvaram o espetáculo.
O time do River era, realmente, uma máquina. Futebol bonito e um
entendimento que só um time que joga junto há três anos pode ter.
Modestamente, jogamos trancados. A prudência mandava que isto fosse
feito. De fato, se “abríssemos”, tomaríamos um baile.
Foi um jogo de rara beleza. E não foi por acaso. De um lado estavam
Rossi, Labruña, Vairo, Menéndez, Zarate, Carrizo. De outro, estavam
Didi, Nilton Santos, Garrincha etc. Jogo duro e jogo limpo. Não se
tratava de camaradagem adquirida em quase um mês no mesmo hotel, mas sim
da presença de grandes craques no gramado. A torcida exultava e os
“mariaches” atacavam entusiasmados.
Estava muito difícil fazer gol. Poucas vezes vi um jogo disputado com
tanta seriedade e respeito mútuos. Mas houve um espetáculo à parte.
Mané Garrincha foi o comandante. Dirigiu os cem mil espectadores.
Fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi ali, naquele dia, que
surgiu a gíria do “Olé”, tão comumente utilizada posteriormente em
nossos campos. Não porque o Botafogo tivesse dado “Olé” no River. Não.
Foi um “Olé” pessoal. De Garrincha em Vairo.
Nunca assisti a coisa igual.
Só a torcida mexicana com seu traquejo de touradas poderia, de forma
tão sincronizada e perfeita, dar um “Olé” daquele tamanho. Toda vez que
Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais
profundo silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible e deixava
Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas exclamava: “Ôôôôô”! O som do
“olé” mexicano é diferente do nosso. O deles é o típico das touradas.
Começa com um ô prolongado, em tom bem grave, parecendo um vento forte,
em crescendo, e termina com a sílaba “lé” dita de forma rápida. Aqui é
ao contrário: acentua-se mais o final “lé”: “Olééé!” – sem separar, com
nitidez, as sílabas em tom aberto.
Verdadeira festa. Num dos momentos em que Vairo estava parado em
frente a Garrincha, um dos clarins dos “mariaches” atacou aquele trecho
da Carmem que é tocado na abertura das touradas. Quase veio abaixo o
Estádio Universitário.
Numa jogada de Garrincha, Quarentinha completou com o gol vazio e fez
nosso gol. O River reagiu e também fez o dele. Didi ainda fez outro, de
fora da área, numa jogada que viera de um córner, mas o juiz anulou
porque Paulo Valentim estava junto à baliza. Embora a bola tivesse
entrado do outro lado, o árbitro considerou a posição de Paulinho
ilegal. De fato, Paulinho estava “off-side”. Havia um bolo de jogadores
na área, mas o árbitro estava bem ali. E Paulinho poderia estar
distraindo a atenção de Carrizo.
O jogo terminou empatado. Vairo não foi até o fim. Minella tirou-o do
campo, bem perto de nós no banco vizinho. Vairo saiu rindo e
exclamando: “No hay nada que hacer. Imposible” – e dirigindo-se ao
suplente que entrava, gozou:
– Buena suerte muchacho. Pero antes, te aconsejo que escribas algo a tu mamá.
O jogo terminou empatado e uma multidão invadiu o campo. O “Jarrito
de Oro”, que só seria entregue ao “melhor do campo” no dia seguinte,
depois de uma votação no café Tupinambá, foi entregue ali mesmo a
Garrincha. Os torcedores agarraram-no e deram uma volta olímpica
carregando Mané nos ombros. Sob ensurdecedora ovação da torcida. No dia
seguinte, os jornais acharam que tínhamos vencido o jogo, considerando o
tal gol como válido. Mas só dedicaram a isto poucas linhas. O resto das
reportagens e crônicas foi sobre Garrincha.
As agências telegráficas enviaram longas mensagens sobre o acontecimento
e deram grande destaque ao “Olé”. As notícias repercutiram bastante no
Rio e a torcida carioca consagrou o “Olé”. Foi assim que surgiu este
tipo de gozação popular, tão discutido, mas que representa um sentimento
da multidão.
Já tentaram acabar com o “Olé”. Os árbitros de futebol, com sua
inequívoca vocação para levar vaias, discutiram o assunto em congresso e
resolveram adotar sanções. Mas como aplicá-las? Expulsando a torcida do
estádio? Verificando o ridículo a que estavam expostos, deixam cada dia
mais o assunto de lado. É melhor assim. É mais fácil derrubar um
governo do que acabar com o “Olé”.
Não poderia ter havido maior justiça a um jogador que a que foi feita
pelos mexicanos a Mané Garrincha. Garrincha é o próprio “Olé”.
Dentro e fora de campo, jamais vi alguém tão desconcertante, tão
driblador. É impossível adivinhar-se o lado por onde Mané vai “sair” da
enrascada. Foi a coisa mais justa do mundo que Garrincha tivesse sido o
inspirador do “Olé”.
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