Revista Época/ Reportagem
Cada vez mais pessoas recorrem a testes genéticos
para casos de infidelidade, com exame de camisinhas, peças íntimas e até
sofás
Solange Azevedo
Leo Drumond/Nitro
|
|
|
Maridos, esposas e
namorados desconfiados ganharam uma nova arma contra a traição. Exames de DNA
são cada vez mais acessíveis. No Brasil, os laboratórios já estão habituados a
testar calcinhas, camisinhas e até tecido de sofá. Agora, alguns clientes vão
mais longe: usam testes genéticos até para tentar descobrir quem arranhou seu
carro no estacionamento. De canudos a guardanapos, pontas de cigarros e fios de
cabelo, qualquer objeto pode deixar uma pista biológica. Ninguém está a
salvo.
'Hoje, tudo é motivo para fazer DNA', diz Denilce Sumita, do Núcleo
Forense do Genomic Engenharia Molecular. 'Cada vez mais, estamos sendo
procurados por motivos banais.' No início deste ano, uma senhora do Nordeste
mandou duas blusas para a sede do laboratório, na capital paulista. Ao suspeitar
que a empregada havia usado as peças, não teve dúvidas, pagou R$ 1.600 para
tentar provar a audácia da funcionária. A perita Denilce extraiu o DNA da
sudorese impregnada nas roupas e comparou com amostras da desconfiada. Os traços
de suor nas blusas eram da própria patroa. O único pecado da empregada foi ter
deixado de lavar a roupa da madame.
Kit para teste de
paternidade caseiro é vendido por R$
800
|
Em tese, é possível extrair DNA de
qualquer tipo de material, desde que o armazenamento seja adequado e haja
quantidade suficiente de amostra biológica, como sangue, urina, sêmen, saliva ou
pele. A síndrome de Sherlock Holmes ganha tanto terreno que um universitário
paulista desembolsou R$ 4 mil para tentar desmascarar um desafeto. Desconfiado
de que o rapaz havia riscado seu carro e grudado um chiclete na lataria do
veículo, guardou a goma de mascar e ficou à espreita. Seguiu o suspeito até um
bar e surrupiou dois canudos plásticos de sua lata de refrigerante. Só que os
testes genéticos mostraram que a pessoa que mascou o chiclete não era a dona da
saliva extraída dos canudinhos.
#Q#
Se o resultado fosse positivo, não teria valor judicial. Os tribunais
brasileiros não aceitam provas obtidas por meios não-oficiais. O problema é que
também não há lei que determine a ilegalidade dessas ações. As discussões sobre
o tema, ainda muito rasas, se limitam apenas ao campo da ética. 'O DNA é a
impressão digital do indivíduo. ä Invadir a privacidade de uma pessoa dessa
forma não é correto. Os laboratórios deveriam se recusar a fazer exames desse
tipo', diz Marco Segre, professor de Medicina Legal e Bioética da Universidade
de São Paulo.
A produção de provas através do DNA, sem o consentimento
dos envolvidos, é polêmica - mesmo em investigações policiais. No início de
2002, o Supremo Tribunal Federal (STF) mandou recolher a placenta da cantora
mexicana Gloria Trevi. Ela engravidou enquanto estava presa na Polícia Federal,
em Brasília. Recusou-se a revelar quem era o pai do bebê e lançou suspeitas
sobre um delegado. Seus advogados foram mais longe e disseram que ela havia sido
estuprada na carceragem. Diante do imbróglio, o STF decidiu que prevalecia o
direito público de esclarecer as circunstâncias da gravidez. Naquela ocasião, o
ministro Néri da Silveira alegou que, depois do parto, a placenta já não fazia
parte do corpo de Glória e que, por isso, não haveria constrangimento para a
realização do teste. Laudo do Instituto Nacional de Criminalística mostrou que o
pai era o namorado da cantora.
Especialistas
discutem o uso de material genético
descartado
|
Meses depois, policiais de
Goiânia usaram a mesma tese - a do material biológico descartado - para
desvendar a real identidade de Roberta Jamilly Martins. Havia suspeitas de que a
moça havia sido seqüestrada 24 anos antes pela empresária Vilma Martins.
Roberta, chamada à delegacia, recusou fazer exame de DNA. Mas os agentes
recolheram sorrateiramente uma bituca de cigarro que ela havia deixado no
cinzeiro e conseguiram comprovar que, na verdade, ela era Aparecida Fernanda
Ribeiro da Silva, a menina seqüestrada numa maternidade de Goiânia.
A
possibilidade do uso indiscriminado da Ciência para casos não-criminais ou de
identificação de paternidade preocupa especialistas. 'Precisamos regulamentar a
realização de testes de DNA e a utilização de material genético descartável',
acredita César Grisólia, professor do Departamento de Genética da Universidade
de Brasília (UnB). 'As pessoas não confiam mais nas outras. Diversas situações
poderiam ser resolvidas na conversa, mas há indivíduos que preferem invadir a
privacidade do outro para produzir provas a dialogar', avalia Áderson Luiz Costa
Júnior, do Instituto de Psicologia da UnB. Isso fica ainda mais evidente em
casos de desconfiança conjugal. 'Recebemos muitas solicitações estranhas. O mais
comum são maridos que querem checar se há sêmen de outro homem na calcinha da
mulher', diz o médico Victor Pardini, do Instituto Hermes Pardini, de Belo
Horizonte. Nesse caso, o material biológico colhido na calcinha é comparado com
o do marido desconfiado. Se for diferente, é sinal de traição.
O médico conta
que uma mulher chegou a arrancar um pedaço do sofá e levar para exame. Queria
saber se uma mancha no tecido era sêmen do marido. Caso o resultado desse
positivo, teria certeza de que estava sendo traída com a vizinha, já que um dia,
ao chegar mais cedo, pegou a moça saindo apressada da casa. Outra cliente do
instituto guardou na geladeira 60 camisinhas usadas para provar concubinato. O
magistrado que tocava o processo judicial pediu DNA dos preservativos e ela
conseguiu comprovar que mantinha relação estável com o dono do sêmen
congelado.
#Q#
Maurilo Clareto/ÉPOCA
|
|
|
O médico
paranaense Salmo Raskin, do laboratório Genetika, também coleciona diversas
histórias bizarras, desde solicitações para extrair DNA de fios de cabelo
encontrados em travesseiros até pedidos de exames de calcinhas. Em casos de
paternidade, ele tem até clientes cativos. Certa vez, Raskin reconheceu um
empresário catarinense na sala de espera do laboratório e perguntou: 'Osenhor
não esteve aqui no ano passado para fazer um teste de DNA? Houve algum
problema?'. O empresário respondeu que o problema era que, como ele viajava
muito e no retorno sempre encontrava a mulher grávida, decidira comprovar também
a paternidade da segunda filha. Tempos depois, o catarinense voltou ao Genetika
para examinar a terceira filha. 'Os três resultados foram positivos. Oempresário
costumava brincar que, em vez do teste do pezinho, preferia fazer o do DNA. Mas
tudo isso com o consentimento da mulher, que ia ao consultório junto com o
marido, e parecia não se importar com os testes', conta o médico.
Em alguns
casos, a própria mãe se antecipa. O laboratório André Rey, de Goiânia, recebeu a
visita de uma gestante que queria saber se o feto era filho do marido dela.
'Recusei-me a realizar o procedimento, invasivo para o feto', diz o médico Anor
Oliveira Neto.'Sugeri que ela fizesse depois do parto', conta. A mulher
argumentou que não podia esperar. Levando o médico até a sala de espera, mostrou
seu motorista particular, que era negro. 'Ela disse que, se o filho não fosse
legítimo, o marido descobriria na hora. E que preferia fazer um aborto', conta.
Meses depois, a mulher voltou para tranqüilizar o médico, dizendo que a criança
era filha do marido. E que estava bem.
A área é tão promissora que, há dois
anos, o Instituto Hermes Pardini lançou o kit DNA em Casa. Com o material,
adquirido pela internet, o pai colhe facilmente células da mucosa da boca do
filho que desconfia não ser seu. E as encaminha, pelo correio, ao laboratório.
Custa R$ 800. O resultado também pode ser consultado pela rede. Tudo isso com o
mais absoluto sigilo. Esse processo de investigação é tão secreto que nem a mãe,
que indiretamente está sendo testada, fica sabendo. A polêmica do DNA está
apenas começando.
Revista Época/ Reportagem