segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Com o DNA na cueca

Revista Época/ Reportagem
 
Cada vez mais pessoas recorrem a testes genéticos para casos de infidelidade, com exame de camisinhas, peças íntimas e até sofás
 
Solange Azevedo
Leo Drumond/Nitro
Maridos, esposas e namorados desconfiados ganharam uma nova arma contra a traição. Exames de DNA são cada vez mais acessíveis. No Brasil, os laboratórios já estão habituados a testar calcinhas, camisinhas e até tecido de sofá. Agora, alguns clientes vão mais longe: usam testes genéticos até para tentar descobrir quem arranhou seu carro no estacionamento. De canudos a guardanapos, pontas de cigarros e fios de cabelo, qualquer objeto pode deixar uma pista biológica. Ninguém está a salvo.
'Hoje, tudo é motivo para fazer DNA', diz Denilce Sumita, do Núcleo Forense do Genomic Engenharia Molecular. 'Cada vez mais, estamos sendo procurados por motivos banais.' No início deste ano, uma senhora do Nordeste mandou duas blusas para a sede do laboratório, na capital paulista. Ao suspeitar que a empregada havia usado as peças, não teve dúvidas, pagou R$ 1.600 para tentar provar a audácia da funcionária. A perita Denilce extraiu o DNA da sudorese impregnada nas roupas e comparou com amostras da desconfiada. Os traços de suor nas blusas eram da própria patroa. O único pecado da empregada foi ter deixado de lavar a roupa da madame.

Kit para teste de paternidade caseiro é vendido por R$ 800
Em tese, é possível extrair DNA de qualquer tipo de material, desde que o armazenamento seja adequado e haja quantidade suficiente de amostra biológica, como sangue, urina, sêmen, saliva ou pele. A síndrome de Sherlock Holmes ganha tanto terreno que um universitário paulista desembolsou R$ 4 mil para tentar desmascarar um desafeto. Desconfiado de que o rapaz havia riscado seu carro e grudado um chiclete na lataria do veículo, guardou a goma de mascar e ficou à espreita. Seguiu o suspeito até um bar e surrupiou dois canudos plásticos de sua lata de refrigerante. Só que os testes genéticos mostraram que a pessoa que mascou o chiclete não era a dona da saliva extraída dos canudinhos.

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Se o resultado fosse positivo, não teria valor judicial. Os tribunais brasileiros não aceitam provas obtidas por meios não-oficiais. O problema é que também não há lei que determine a ilegalidade dessas ações. As discussões sobre o tema, ainda muito rasas, se limitam apenas ao campo da ética. 'O DNA é a impressão digital do indivíduo. ä Invadir a privacidade de uma pessoa dessa forma não é correto. Os laboratórios deveriam se recusar a fazer exames desse tipo', diz Marco Segre, professor de Medicina Legal e Bioética da Universidade de São Paulo.

A produção de provas através do DNA, sem o consentimento dos envolvidos, é polêmica - mesmo em investigações policiais. No início de 2002, o Supremo Tribunal Federal (STF) mandou recolher a placenta da cantora mexicana Gloria Trevi. Ela engravidou enquanto estava presa na Polícia Federal, em Brasília. Recusou-se a revelar quem era o pai do bebê e lançou suspeitas sobre um delegado. Seus advogados foram mais longe e disseram que ela havia sido estuprada na carceragem. Diante do imbróglio, o STF decidiu que prevalecia o direito público de esclarecer as circunstâncias da gravidez. Naquela ocasião, o ministro Néri da Silveira alegou que, depois do parto, a placenta já não fazia parte do corpo de Glória e que, por isso, não haveria constrangimento para a realização do teste. Laudo do Instituto Nacional de Criminalística mostrou que o pai era o namorado da cantora.

Especialistas discutem o uso de material genético descartado
Meses depois, policiais de Goiânia usaram a mesma tese - a do material biológico descartado - para desvendar a real identidade de Roberta Jamilly Martins. Havia suspeitas de que a moça havia sido seqüestrada 24 anos antes pela empresária Vilma Martins. Roberta, chamada à delegacia, recusou fazer exame de DNA. Mas os agentes recolheram sorrateiramente uma bituca de cigarro que ela havia deixado no cinzeiro e conseguiram comprovar que, na verdade, ela era Aparecida Fernanda Ribeiro da Silva, a menina seqüestrada numa maternidade de Goiânia.
A possibilidade do uso indiscriminado da Ciência para casos não-criminais ou de identificação de paternidade preocupa especialistas. 'Precisamos regulamentar a realização de testes de DNA e a utilização de material genético descartável', acredita César Grisólia, professor do Departamento de Genética da Universidade de Brasília (UnB). 'As pessoas não confiam mais nas outras. Diversas situações poderiam ser resolvidas na conversa, mas há indivíduos que preferem invadir a privacidade do outro para produzir provas a dialogar', avalia Áderson Luiz Costa Júnior, do Instituto de Psicologia da UnB. Isso fica ainda mais evidente em casos de desconfiança conjugal. 'Recebemos muitas solicitações estranhas. O mais comum são maridos que querem checar se há sêmen de outro homem na calcinha da mulher', diz o médico Victor Pardini, do Instituto Hermes Pardini, de Belo Horizonte. Nesse caso, o material biológico colhido na calcinha é comparado com o do marido desconfiado. Se for diferente, é sinal de traição.
O médico conta que uma mulher chegou a arrancar um pedaço do sofá e levar para exame. Queria saber se uma mancha no tecido era sêmen do marido. Caso o resultado desse positivo, teria certeza de que estava sendo traída com a vizinha, já que um dia, ao chegar mais cedo, pegou a moça saindo apressada da casa. Outra cliente do instituto guardou na geladeira 60 camisinhas usadas para provar concubinato. O magistrado que tocava o processo judicial pediu DNA dos preservativos e ela conseguiu comprovar que mantinha relação estável com o dono do sêmen congelado.

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Maurilo Clareto/ÉPOCA
O médico paranaense Salmo Raskin, do laboratório Genetika, também coleciona diversas histórias bizarras, desde solicitações para extrair DNA de fios de cabelo encontrados em travesseiros até pedidos de exames de calcinhas. Em casos de paternidade, ele tem até clientes cativos. Certa vez, Raskin reconheceu um empresário catarinense na sala de espera do laboratório e perguntou: 'Osenhor não esteve aqui no ano passado para fazer um teste de DNA? Houve algum problema?'. O empresário respondeu que o problema era que, como ele viajava muito e no retorno sempre encontrava a mulher grávida, decidira comprovar também a paternidade da segunda filha. Tempos depois, o catarinense voltou ao Genetika para examinar a terceira filha. 'Os três resultados foram positivos. Oempresário costumava brincar que, em vez do teste do pezinho, preferia fazer o do DNA. Mas tudo isso com o consentimento da mulher, que ia ao consultório junto com o marido, e parecia não se importar com os testes', conta o médico.
Em alguns casos, a própria mãe se antecipa. O laboratório André Rey, de Goiânia, recebeu a visita de uma gestante que queria saber se o feto era filho do marido dela. 'Recusei-me a realizar o procedimento, invasivo para o feto', diz o médico Anor Oliveira Neto.'Sugeri que ela fizesse depois do parto', conta. A mulher argumentou que não podia esperar. Levando o médico até a sala de espera, mostrou seu motorista particular, que era negro. 'Ela disse que, se o filho não fosse legítimo, o marido descobriria na hora. E que preferia fazer um aborto', conta. Meses depois, a mulher voltou para tranqüilizar o médico, dizendo que a criança era filha do marido. E que estava bem.
A área é tão promissora que, há dois anos, o Instituto Hermes Pardini lançou o kit DNA em Casa. Com o material, adquirido pela internet, o pai colhe facilmente células da mucosa da boca do filho que desconfia não ser seu. E as encaminha, pelo correio, ao laboratório. Custa R$ 800. O resultado também pode ser consultado pela rede. Tudo isso com o mais absoluto sigilo. Esse processo de investigação é tão secreto que nem a mãe, que indiretamente está sendo testada, fica sabendo. A polêmica do DNA está apenas começando.

Revista Época/ Reportagem

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