“Para sobreviver a esse contexto potencialmente lesivo, ameaçador ou traumático desenvolvemos defesas psicológicas, reatividades emocionais e padrões de comportamento que vão sendo automatizados e definirão a maneira de nos relacionarmos na vida adulta, conosco mesmos, com os amigos, na relação a dois, em todos as áreas. Essas defesas ficam ativas e atuantes durante toda a vida e podem ser amenizadas a partir do momento em que a pessoa mergulha em sua história e começa um processo gradual, sequenciado, de autoconhecimento, integração das experiências, ressignificação e liberação emocional, permitindo a consciência das necessidades pessoais, o desenvolvimento da autonomia da vida adulta e a construção de novos modelos relacionais. Nesse processo, é fundamental que a parte adulta que existe em nós assuma o comando, acolha a parte infantil, vulnerável e fragilizada, ofertando-a carinhosamente o que ela necessita e se tornando o seu próprio pai e a sua própria mãe, o que também libera a pessoa para olhar para os pais com mais leveza e liberdade de amar”, disse.
Um exemplo dado pelo médico: “alguém sofre com um sentimento de abandono por ter vivido a ausência dos pais; a falta da presença e do cuidado ou qualquer outra circunstância que foi interpretada emocionalmente como abandono. Essa dor é real e é justa, independentemente das circunstâncias pois é assim que a pessoa experimentou a realidade. No entanto, hoje, o sofrimento não vem tanto do abandono sofrido lá atrás, mas do fato de o adulto que a pessoa é deixar a sua criança abandonada e submetida à falta, no agora, negando-a o que necessita, nutrindo a expectativa de que os pais - ou quem os representa - virão compensar aquela falta ou suprir aquela ausência. Se ela acolhe essa parte vulnerável, pode retirar a si mesma do abandono através da sua própria disponibilidade, presença e afeto, preenchendo o coração um pouco mais - inclusive da presença dos pais - se dando o autocuidado e evitando a projeção intensa dessa falta nas relações afetivas”, disse.
Sobre pais e filhos poderem ser amigos e os riscos ou benefícios disso, o especialista contou que pais e filhos são muito mais que amigos, pois os pais são referências e modelos no processo do desenvolvimento dos filhos.
“A ordem familiar ocupa um papel fundamental que não deve ser invertido. A inversão de ordem tem graves consequências, conforme demonstra a constelação familiar. Quando os filhos veem os pais no mesmo nível de igualdade tendem a não respeitá-los como autoridade e a se atribuírem papéis que não lhes competem, por amor cego.
Frequentemente vemos filhos no meio da relação de casal dos pais, tomando partido nas questões e temas que só dizem respeito ao homem e à mulher ou se comportando como pais dos pais, na fantasia de “salvação”, cura ou educação dos pais. Isso leva os filhos a perderem a referência de segurança, a se sobrecarregarem com posturas de cuidado, o que os deixa indisponíveis para a própria vida, muitas vezes”, disse.
No entanto, conforme Andrei, quando os pais ocupam o seu lugar na ordem familiar e liberam os filhos para suas próprias vidas, conectados com afetividade, orientação, suporte e estímulos adequados a cada fase da vida, os filhos fluem com mais leveza, dinamismo e segurança para seus próprios destinos, conquistas e realizações na vida.
“Para que os pais façam isso, precisam estar no seu lugar na ordem com os seus próprios pais, o que requer, na maioria das vezes, cuidar das suas raizes - conexão com a força dos seus pais e sistemas -, através da honra e da gratidão, e acolher a sua própria criança interior ferida.”
No caso dos filhos e pais que precisam passar por um processo de perdão, o especialista falou que isso é possível ressignificando o olhar para as circunstâncias e vivências.
“Perdão é libertação pessoal quando deixamos o lugar de vítimas e passamos ao de autores da nossa própria história. Não temos poder sobre os acontecimentos mas podemos mudar a narrativa e seus efeitos, pela mudança da interpretação e da postura interior.
Isso não significa negar as dores e feridas interiores, mas sim assumir a autonomia do autocuidado e se ofertar, agora, aquilo que se necessita, o que tem um forte efeito liberador.”
Segundo Andrei, o amadurecimento emocional, o passar do tempo e as novas vivências - como se tornar pai e mãe, por exemplo - também permitem ampliar a consciência sobre o que foi vivido, perceber as exigências infantis que ainda estão ativas em nossos corações e ter uma noção mais adequada do que verdadeiramente necessitamos.
“Os pais também trazem uma criança interior ferida, com suas defesas, reatividades e, muitas vezes, não estão livres para ofertar aos filhos aquilo que estes queriam ou precisavam. Compreender e decidir dar a si mesmo o que se precisa é libertador. Mais importante que o perdão é a reconciliação. Essa representa uma percepção interior do essencial, uma postura de respeito e gratidão pela vida e uma profunda conexão de honra e força com os pais e tudo que eles representam”, finalizou.
Sobre Andrei Moreira
Médico especializado em Homeopatia e terapeuta de constelação familiar formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Andrei Moreira é diretor voluntário da ONG Fraternidade sem Fronteiras. Membro da diretoria da Associação Médico-Espírita de Minas Gerais (AMEMG), da qual foi presidente de 2007 a 2019. Preceptor do Internato em Atenção Integral à Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de Alfenas, campus Belo Horizonte, no período de 2008 a 2012.
Autor de livros como “Atitude – reflexões e posturas que trazem paz”; “Reconciliação: consigo mesmo, com a família, com Deus”; Cura e autocura: uma visão médico espírita” e “Homossexualidade sob a ótica do espírito imortal”.
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