domingo, 11 de setembro de 2016

Longevidade em prosa, verso e experimentações

Uma visita aos arquivos da Imprensa Oficial de Minas Gerais torna evidente as diversas relações que o “Suplemento Literário de Minas Gerais”, por meio de sua equipe de editores, críticos e redatores, construiu ao longo do tempo. Num conjunto de fotos históricas, é possível identificar a presença das escritoras Lúcia Machado de Almeida, Clarice Lispector, Adélia Prado, Laís Correa de Araújo Ávila, entre outros autores como Décio Pignatari, Affonso Ávila e Murilo Mendes, que deixaram contribuições ao periódico e tiveram os seus textos publicados ali.

Essas imagens, portanto, recordam a ampla rede de colaboradores criada em torno do projeto, concebido pelo escritor Murilo Rubião e que agora completa cinco décadas de existência. Junto desses nomes consagrados, aparecem, em parte desses registros, os rostos de novatos na época, como Humberto Werneck, que, ao lado de Jaime Prado Gouvêa – atual diretor da publicação –, Sérgio Sant’Anna e Luiz Vilela, entre outros, figuravam como os mais jovens escritores a ter suas criações impressas nas páginas do “Suplemento”.

A aproximação entre diferentes gerações é, assim, um dos principais legados da linha editorial defendida por Rubião e que se mantém desde 1966, permitindo a convivência entre veteranos e estreantes. “É uma honra dividir o espaço das páginas com Murilo Rubião, Guimarães Rosa, além de outros mais recentes, podendo, assim, fazer parte da história do ‘Suplemento Literário’, que é uma das publicações mais importantes do país”, diz a mineira Marcela Dantés, que teve seus contos publicados pela primeira vez no “Suplemento” em 2015 e neste mês viaja para Portugal, onde participará de uma residência literária com duração de três meses.

Essa abertura ao que vem sendo produzido de mais recente no cenário literário pode ser identificada em diferentes momentos da trajetória do impresso. Vale lembrar a seção, mantida por Vilela, Werneck, Gouvêa e Sant’Anna, que se debruçava sobre “os novos” da literatura brasileira, entre as décadas de 60 e 70.

“Nós começamos esse trabalho primeiro escrevendo sobre os mineiros. Quando achamos que isso havia se esgotado, nós passamos a fazer contato com os novos de toda a parte e publicamos matérias com Moacyr Scliar e Caio Fernando Abreu, por exemplo. No total, nós mostramos 30 entrevistas”, diz Gouvêa.

Outra relevante e emblemática seção foi a “Roda Gigante”, produzida por Laís Correa de Araújo Ávila, que, entre 1966 e 1969, de acordo com a estudiosa Haydée Ribeiro Coelho, trouxe comentários sobre variados autores, contemplando desde os canônicos aos novos artistas e os poetas de vanguarda, além de reunir “entrevistas com importantes intelectuais, críticos e escritores do Brasil e de outras plagas”, sublinha ela no artigo “Roda Gigante: Um Texto Paradigmático”.

Um panorama da diversidade de temas e linguagens abordadas pelo “Suplemento”, desde a sua origem, poderá ser visto na próxima edição comemorativa dos seus 50 anos e que deverá ficar pronto em outubro. De acordo com Gouvêa, a ideia é rememorar acontecimentos importantes, como a primeira vez que os escritos de Julio Cortázar (“Todos os Fogos o Fogo”) e Gabriel Garcia Márquez (“A Prodigiosa Tarde de Baltazar”) saíram no “Suplemento” em português. Em relação ao texto do primeiro, Angelo Oswaldo, atualmente secretário de Estado de Cultura de Minas Gerais, mas na época editor do “Suplemento Literário”, entre 1971 e 1973, ouviu do próprio autor como foi ler os seus escritos em língua portuguesa.

“Cortázar e a mulher, Ugné Karvelis, estavam vindo ao Brasil, em fevereiro de 73, e queriam conhecer muito Ouro Preto. Ênio Silveira, que era editor dele no país, me pediu para ajudá-lo, e eu fui, com Roberto Drummond e Mauro Santayana, encontrar Cortázar. Nós ficamos o dia inteiro conversando, e Cortázar me contou que a primeira vez que ele se leu em português foi no ‘Suplemento Literário’ que recebia em Paris”, conta Oswaldo.

Além desse conto de Cortázar, o volume especial, antecipa Gouvêa, vai trazer também os primeiros poemas que circularam no “Suplemento”. “Vamos mostrar alguns versos que marcam o início dessa trajetória. São escritos de Libério Neves, Murilo Mendes, entre outros nomes, o que vai oferecer um apanhado do que veio a público nestes 50 anos”, afirma o escritor.

Outro destaque será uma entrevista que o crítico Antonio Candido deu para Helvécio Ratton e que é ainda inédita em texto. Numa das partes do diálogo, o pesquisador ressalta o caráter diplomático de Rubião. “Antonio Candido fala, por exemplo, como Murilo Rubião, tinha uma grande capacidade de liderança. Ele mesmo ficava assustado como nas reuniões Rubião conseguia reunir escritores que tinham pontos de vista muito distintos, o que causava muita briga. Mas ele tinha a habilidade de apaziguar os ânimos durante os encontros”, conta João Barile, coordenador de promoção e articulação literária do “Suplemento”.

LINGUAGENS

Do uso da palavra às artes visuais

Dentre as expressões que surgiam no “Suplemento Literário de Minas Gerais”, a poesia, o conto e os ensaios apareciam em maior volume, embora convivessem com a crítica de teatro, de cinema e de artes plásticas. Esse caráter multidisciplinar que caracteriza a publicação, desde a sua origem, nutriu escritores, além de artistas, como Márcio Sampaio, Liliane Dardot e Lucas Raposo – este último, inclusive, foi o diagramador responsável por desencaixotar as colunas de texto, valorizando a liberdade de criação.

Assim, se nas páginas do periódico autores eram convidados a explorar novas possibilidade no universo das letras, o mesmo era oferecido a quem transitava mais pelas imagens. A pesquisadora Viviane Maroca observa como no caso dos primeiros uma das formas literárias mais problematizadas ali foi o conto, que frequentemente era abordado por meio de textos ficcionais e teóricos.

“A partir de 1968, há consistentemente mais escritos sobre o conto. Houve uma série organizada por Luis Gonzaga Vieira, por exemplo, em que ele tratava do conto. Ao longo de seis números, que foram publicados em seis semanas, ele quase fez um manifesto a partir da análise dos textos que vinha acompanhando. Vieira começou a notar que em quase todos os contistas havia um discurso contra a repressão. Ele, então, defendia que não deveria haver regras, cada um faria o conto como quisesse”, diz.

A artista plástica Liliane Dardot, ilustradora do “Suplemento” recorda que tinha total liberdade. “Eu ainda era estudante de belas artes na época e fazia o que queria, a partir dos textos que me mandavam. Normalmente, só me davam uma indicação do espaço da página”, recorda.

O poeta e artista plástico Sebastião Nunes, aliás, lembra-se que volta e meia a diagramação da página era alvo de reclamação. “Havia um pessoal mais conservador que achava que o ‘Suplemento’ era um antro de subversivos e eles implicavam com algumas coisas. Eles não gostavam de uma página inteira apenas para um poemas de seis versos com ilustração e, algumas vezes, ameaçavam fechar o ‘Suplemento’”, pontua Nunes.

CONVIVÊNCIA

Criatividade e parcerias no dia a dia da redação

Diferentemente de hoje, em que existem uma diversidade de blogs, entre outras plataformas, há 50 anos, quando surgiu o “Suplemento Literário”, o espaço para se veicular conteúdos ligados à arte e à literatura dependia muito dos jornais impressos. O escritor, jornalista e ex-editor do periódico Fabrício Marques observa, a partir deste retrato, a importância do projeto criado por Murilo Rubião, responsável por agregar intelectuais e artistas ao longo de décadas.

“Houve gerações que se aglutinaram em torno do ‘Suplemento’, o que possibilitou também a formação de leitores. A política editorial, ao contemplar consagrados e novos, permitiu que as pessoas tivessem acesso aos clássicos e ao que estava sendo produzido no calor da hora”, observa Marques. O resultado disso era um volume bastante heterogêneo, o que refletia as escolhas de Rubião. Este, enquanto atuou diretamente no “Suplemento”, inclusive, tentou criar um clima ameno, apropriado para estimular a verve criativa da equipe.

“Murilo nos dava liberdade total e deixava que todo mundo que estava começando ali, entre escritores e artistas, pudessem produzir livremente. O dia a dia era bastante lúdico e qualquer traço muito acadêmico não combinava com a gente”, acrescenta Jaime Prado Gouvêa, atual editor do “Suplemento Literário”.

A redação logo se tornou um ponto de encontro no qual convergiam todos os interessados nos movimentos artísticos da época. “Emílio Moura, por exemplo, ia para lá todo fim de tarde conversar com Murilo Rubião, e os caras mais novos, como Sérgio Sant’Anna e Jaime Prado Gouvêa, também procuravam participar dessas conversas. Algo muito legal que acontecia em Belo Horizonte naquela geração é que o pessoal da música, do cinema, da literatura, das artes plásticas, todos conversavam e muitos desses diálogos aconteciam ali”, afirma João Barile, coordenador de promoção e articulação literária do "suplemento".

O Tempo

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