O Tempo
PUBLICADO EM 06/09/16 - 03h00
Li outro dia uma frase aterrorizante que nos explica – hoje. Quando o escritor Primo Levi foi preso em Auschwitz, ele perguntou algo a um oficial do campo. O sujeito respondeu: “Hier ist kein warum” (“Aqui não há o porquê”). Estamos sem porquês.
Aquela fotografia de um menino sírio em Alepo, coberto pelos restos de uma explosão, mostra nossa solidão diante do mal. Existe hoje no mundo um novo mal, um mal sem culpados visíveis. O mal no mundo atual é o “incompreensível”.
Quando Hitler atacou o mundo com o nazismo, quando Stálin matou mais gente que o alemão, ainda havia uma sórdida “finalidade” em seus atos; sua violência era justificada por uma “causa” a ser atingida: ou o Milênio Ariano, ou o paraíso comunista. Para eles, todos os atos eram perdoados por essa intenção de futuro. O futuro de nosso presente só nos promete tragédias anunciadas.
O mal ficou difuso. Onde está o mal hoje? No terror, no meio da miséria, entre fezes? Os fanáticos do islã querem destruir o demônio – que somos nós. Os atentados são cada vez mais terríveis, procurando apagar a alegria da vida ocidental que tanto invejam.
A Coreia do Norte, governada por um porco, ameaça-nos com a bomba atômica. O Maduro destrói seu país entre assassinatos e fome, o Assad arrasa a Síria e exporta milhões de pobres-diabos; Putin, aquele agente do mal, não permite a queda do ditador russo. Aqui, mais perto, na América, temos o Trump, que é o mal encarnado; para ele, os democratas são os cães infiéis, exatamente como pensam os muçulmanos radicais que matam pelo prazer de nos horrorizar com degolamentos na mídia.
Os terroristas injetaram o arcaico no moderno. No 11 de Setembro, os aviões viraram balas, mísseis. Osama nos fez ver o lixo que se escondia sob o progresso, a “razão” suja do Ocidente sob o governo do estafermo do Bush. Osama desmoralizou a América, nosso mito de competência, e comandou todos os erros pavorosos da vingança norte-americana.
Nunca a América errou tanto. O horror atual tem várias origens, mas uma delas é o Bush. O mal ocidental escondido sob o “bem” apareceu – o eixo ocidental do mal. Hoje, com o EI, a arma maior é a internet, doutrinando malucos para o mal.
Antigamente, era mole. O mal era o capitalismo, o bem era o socialismo. Todos fingiam ser o bem. Ninguém dizia, de fronte alta: “Eu sou o mal!” ou: “Muito prazer, Diabo de Oliveira...”
Agora, os intelectuais orgânicos, padres de esquerda, caridosos de carteirinha, cafetões da miséria, santos oportunistas estão em pânico. Pensam: “Se não houver um mal claro, como seremos bons?” Sente-se no ar uma sede, uma fome de mal. Jovens neonazistas declararam outro dia na Áustria: “Não aguentamos mais a monotonia da democracia”. O mal é excitante. Ninguém quer ser livre. O sucesso planetário dos evangélicos, as massas delirando com ídolos de rock, mostram que, no mundo inteiro, as massas querem slogans irracionais, querem o fundamentalismo da crueldade prática, das soluções finais. Infelizmente, como disse Baudrillard: “Contra o mal, só temos o fraco recurso dos direitos humanos”.
O mal parece uma forma perversa de liberdade.
O mal parece uma forma perversa de liberdade.
O mundo atual está numa sinuca de bico. Não há mais dualidades. Inimigos de “vários matizes” estão disseminados nos países. O bem não sabe para onde vai, não sabe nem mesmo se ainda é o bem. Desde que me entendo, nunca vi uma mutação tão intempestiva. Não é nas mentalidades, mas na matéria da vida, nas engrenagens que movem o mundo.
Hoje, a desesperança com qualquer hipótese de totalidade está parindo novas formas larvais de sobrevivência neste mundo decepcionante.
Esse mal em polvilho, em pó, essa chuva de mal se “balcaniza” em ilhas ideológicas e psicológicas – o mundo se “desunifica” em vazios, em avessos, em “buracos brancos” que vão se alargando à medida que o tecido da sociedade “linear” se esgarça. É um arquipélago de zonas de terror. Se, antes, havia a polarização de ideologias em oposições binárias, pretos contra brancos, socialismo versus capitalismo, isso vinha da ideia de “sistema e contrassistema”, de “cultura e contracultura”. Essa oposição acabou.
Um dos dramas de hoje é que não há mais fatos – só expectativas. A história vai devagar e por linhas tortas. A última grande mudança foi a queda das torres em Nova York. Em dez minutos, nossa vida mudou. O que houve no mundo foi o fim do sonho da unidade, o fim da possibilidade de uma “grande narrativa” – como dizem os pós-utópicos, perplexos e com uma pontinha de alívio da obrigação de grandes “relevâncias”. O que acabou foi o “UM”. Acabou o anseio totalizante de se achar uma única resposta, desejo antiquíssimo de tudo reduzir a um símile do corpo humano: a sociedade funcionando como um organismo sob controle.
Como escreveu Paul Valéry em seu texto “A Política do Espírito”: “A desordem do mundo atual nos habitua intimamente a ela; nós a vivemos, nós a respiramos, nós a fomentamos, e ela acaba por ser uma verdadeira necessidade nossa. Nós encontramos a desordem a nossa volta e dentro de nós mesmos, nos jornais, nos dias e noites, em nossas atitudes, nos prazeres, até em nosso saber”.
O mal se espalha em formas cada vez mais inventivas. O mal tem imaginação.
No Brasil é diferente. O que nos assola não é o grande mal. O perigo aqui é o pequeno mal, enquistado nos estamentos, nos aparelhos sutis do Estado, nos seculares dogmas jurídicos, nos crimes que são lei. O mal do Brasil não está na infinita crueldade de elites egoístas; está mais em sua cordialidade. O mal está no mínimo.
Aqui, o perigo é o bem.
O Tempo
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