O Tempo
Arnaldo Jabor
PUBLICADO EM 08/12/15 - 04h30
Tudo já foi escrito sobre essa crise óbvia e vagabunda que ronda o Brasil. Já se sabe de tudo, tudo está dito, analisado e é o único tema da hora. Não aguento mais esse assunto cheio de medo, de dúvidas, de adivinhações e profecias vãs. Por isso falo hoje sobre coisas ínfimas, mas fundamente vivas na minha memória. Vamos lá.
Há algum tempo passava de carro em frente ao morro da Mangueira, quando de repente vi que estava na rua da minha primeira infância. Ali, no Rocha, na antiga rua Guimarães e hoje rua Almirante Ari Parreiras. Estava diante de minha casa, onde vivi até os 8 anos. Estava na frente de minha infância. Não ia lá havia mais de 40 anos. A casa de meus pais estava ali, geminada à casa de meus avós. Meu Deus... como a casa era pequenina.
Uma varandinha de azulejos verdes, umas janelinhas toscas, um quintal ao fundo. Parei o carro e apontei os faróis para ver melhor. Um sujeito apareceu na janela, e eu fui embora. Ao lado, a mesma casinha tosca onde moravam meus avós. Quando criança, tudo me parecia imenso, misterioso, maravilhoso, e eu estava ali diante de duas casinhas de classe média de subúrbio. Assim, desmaiaram um pouco meus triunfos imaginários como índio com penas de galinha, de pulador de carniça e de caubói dos filmes do cine Palácio Vitória no fim da rua. No jardinzinho da entrada ainda restavam plantas que minha avó cultivava no passado. Ainda estavam ali as marias-sem-vergonhas, as begônias e a dama-da-noite que exalava um perfume mágico de suas estrelinhas brancas sob o céu estrelado do subúrbio. E aí, me perguntei: “Eu já escrevi sobre meu pai, minha mãe, meu avô – por que não sobre minha avozinha?”.
Acho que foi porque ela teve um papel secundário como as senhoras daquela época. Ela era quase ausente, quase imperceptível em minhas memórias. Cuidava da casa com esmero, sua colcha indiana dourada e vermelha, sua jarra de Murano, seu quadro de Gastão Formenti (ela dizia: “Canta e pinta bem”).
Seu universo sempre foi estreito. Na classe média carioca dos anos 50, cercados de preconceitos, medos e ciúmes nas casas sombrias, os casais estavam programados para tristezas indecifráveis. Eu via as famílias; sempre havia uma ponta de silêncio, olhos sem luz, depois dos casamentos esperançosos com buquês arrojados para o futuro que ia morrendo aos poucos. Mas havia também naquele tempo uma poética do atraso – na Lapa, no Mangue, havia um Rio que, com poucas migalhas, fabricava uma urbanidade pobre, bela.
Viveram até os anos 60 no subúrbio ainda baldio; depois, o apartamento mixa de Copacabana, onde vi minha avó entristecendo pouco a pouco, tentando manter um sonho de família, tentando manter a cortina de veludo, a poltrona coberta de plástico para não gastar, os quadros de rosas.
Minha avó tinha os cabelos azuis. E essa tintura contra a velhice era seu maior orgulho quando ia de tailleur à missa. Sua história era brevíssima, contada aos pedaços: cartões-postais que ela colecionava (com o crescimento dos correios internacionais) – lembro de um que me enchia de precoce nostalgia: “Feliz 1908!”. Contou-me um sonho recorrente que tinha com anjos azuis descendo a rua, lembro de sua máquina de costura Singer, sua cultura em francês subestimada por meu avô ignorante e até de uma breve interferência na literatura nacional de que se orgulhava, pois na fazenda Santo Antônio, onde trabalhara, despejou muitos baldes das hemoptises de Manuel Bandeira, que esteve lá curando a tuberculose. “Coitado do Manuel Bandeira... toda hora cuspia sangue...”
Parecia que só tinha acontecido meia dúzia de fatos em sua vida, além de ter gerado minha mãe e minha tia e (descobri num caderno velho de meu avô) uma filhinha que morreu com um ano, chamada Alice, de gripe espanhola – fato sempre ocultado. Hoje, falamos demais; antigamente ninguém dizia nada – desquite era pecado, até tuberculose era mal mencionada como a “pertinaz moléstia”.
Minha avó teve um sofrimento calado durante mais de 20 anos: meu avô tinha uma amante, colega de escritório, uma ruiva grandona que conheci, também desesperada porque meu avô nunca a assumira e que me beijava com trêmula ternura como se eu fosse seu neto postiço.
Minha avó ignorava telefonemas suspeitos, frases soltas, horas tardias de chegada, esperas infinitas e fingia não entender quando minha mãe e tia falavam “por alto” sobre a dona Celeste (seu nome) na sua frente. Todos sabiam, e ninguém falou.
Sua única confidente era Hermínia, a empregadinha. Esta era quase um fiapo, quase nada, pretinha, magrinha e viera da roça como todas as empregadas da época. Achávamos que “roça” era um lugar de onde vinham as pessoas pobres, outro país, com batatas e mandiocas, pastos de bois e empregadas que se agregavam a famílias urbanas. Nessa época, já tinham se mudado para Copacabana, ali no Posto 6.
Um dia, Hermínia que queria ajudar vovó, levou-a a um centro espírita “linha branca”, onde uma médium com voz grossa de caboclo lhe disse que havia uma “mulher atrapalhando sua vida – ela é grande e tem o cabelo vermelho, muito vermelho!”.
Vovó voltou para casa mais triste ainda e falou para as filhas que o pai delas ia abandoná-la por uma mulher de cabelo vermelho... Mamãe dizia: “Bobagem, não liga para essas macumbas, não”.
Mas, a partir dessa época, minha avó parou de pintar o cabelo de azul e vivia calada pelos cantos com suas farripas brancas manchadas e despenteadas. Se trancava muito. Um dia, cheguei do colégio e ouvi pela porta fechada de seu quarto um choro lento, soluçante. Que houve, vovó? Está passando mal?
Nada, meu filho, estou resfriada. Tem um copo de leite pra você na geladeira.
Ficava sempre numa cadeirinha de balanço quietinha e ali foi encontrada depois de seu último suspiro. Não incomodou ninguém.
Depois que ela se foi, meu avô ficava o dia todo sentado na mesma cadeirinha olhando o mar, por uma nesga entre dois edifícios. De vez em quando, passava um navio.
O Tempo
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