Polêmico. Controverso. Incoerente. Provocador. Cineasta. Escritor. Poeta. Crítico. Dramaturgo. Apresentador de TV. Pensador. “Glauber Rocha é muito amplo para ser definido. A ideia de pensar Glauber é sempre reduzir, porque ele fazia tudo ao mesmo tempo”, reflete o professor de cinema brasileiro Ataídes Braga.
No aniversário de 35 anos da morte – completados hoje – Glauber Rocha não é apenas um dos nomes, se não o nome, mais influentes do cinema nacional. É um dos pensadores mais marcantes e significativos da cultura brasileira. Suas ideias e proposições tiveram um escopo intelectual e um alcance tamanho que é difícil mensurar se seu legado hoje é mais importante como cineasta, artista, ou como pensador e agitador político-cultural.
“Não sei se eu conseguiria separar os dois. Tenho a sensação de que ele estava o tempo todo tentando pensar o Brasil, seja como pensador nos textos dele, seja como realizador buscando formas cinematográficas que dessem conta do país e tivessem um caráter de intervenção”, reflete Érico Araújo, pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), que estudou Rocha no mestrado.
Mesmo para os jovens realizadores contemporâneos, que inevitavelmente beberam na fonte de Glauber e do Cinema Novo, não é fácil fazer essa distinção ao avaliar a influência do cineasta. Aly Muritiba, diretor de “Para Minha Amada Morta”, admite que não vê muitas semelhanças estéticas entre seus filmes e a obra de seu conterrâneo baiano. “No entanto, a postura de mundo dele, de buscar realizar uma arte revolucionária, que botasse o povo na tela e tivesse compromisso com uma certa ideia de América Latina, é algo que eu também procuro no que faço”, reconhece. Nesse sentido, a influência seria mais política do que estética. “Muito embora política e estética para mim não estejam desligados”, argumenta Muritiba.
Esse pensar o fazer cinematográfico como um ato político – não existe cinema sem partido, assim como não existe escola sem partido – é o que Ataídes Braga acredita ser o grande legado de Glauber e do Cinema Novo, mais que qualquer recorte temático ou malabarismo de linguagem. “É essa ideia de ir ao encontro da realidade e filmá-la com suas condições reais de produção estética”, descreve, parafraseando “Uma Estética da Fome”, tese de Glauber que acabou se tornando o grande manifesto cinemanovista.
Érico Araújo explica que o que o cineasta baiano propunha com isso é que, a cada filme, é necessário encontrar um novo caminho que dê conta de uma totalidade de país – que reflita sobre o passado e esteja interessado numa certa ideia de Brasil do futuro. Em filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe”, isso é bastante claro.
“Mas a minha questão foi que, mais para o final de sua filmografia, ele vai esfacelando tanto a forma nessa busca que acho que ele se coloca diante da impossibilidade de fazer qualquer síntese”, conta o pesquisador, que centrou sua dissertação em “A Idade da Terra”, último longa de Glauber. E ao se deparar com essa inviabilidade, o diretor buscou outras soluções estéticas. “Ele recorre à alegoria. Não há mais relação de espelhamento com o social. O cinema não é mais uma imediata representação da sociedade, mas inventa outras perspectivas de sociedade”, analisa.
Aly Muritiba vê isso claramente em “Terra em Transe”, seu filme favorito de Glauber. “Acho incrível a alegoria que ele cria para falar do contexto político nacional daquele momento (1967), criando aquele país tropical, aquela República de Bananas que, inclusive, parece muito com o Brasil pós-golpe hoje”, comenta. Ataídes concorda. “‘Terra em Transe’ é o filme político mais importante da história mundial. É atualíssimo e representa todo o momento político brasileiro hoje”, pontifica.
É exatamente essa atemporalidade dos filmes e do pensamento glauberiano que torna irresistível imaginar como o cineasta-pensador-agitador estaria respondendo ao atual momento político do país, caso estivesse vivo. Muritiba acredita que ele estaria nas ruas mobilizando as forças culturais, intelectuais “e metafísicas” do Brasil para denunciar o golpe. Araújo gostaria de saber como seria o diálogo do cineasta com a produção imagética de movimentos como a ocupação nas escolas e as manifestações nas ruas. “Acho que ele estaria inventando outro jeito de experimentar o cinema, para passar nas ruas e nas manifestações como pensamento e intervenção no mundo, de constante resistência ao golpe e a tudo”, reflete.
Já Ataídes – lembrando a metamorfose de incoerências de Glauber, que foi marxista, brizolista, apoiou o surgimento do PMDB, a abertura de Geisel, afastou-se de Lula quando o movimento operário se radicalizou e alimentou pretensões políticas reais antes da morte em 1981 – não sabe dizer se o cineasta estaria desiludido com Dilma, com Temer ou “criticando todo mundo na Terra do Sol. Paulo Emílio Salles Gomes dizia que Glauber era um profeta alado. E, como todo profeta, às vezes ele acertava, às vezes não”, considera.
O Tempo
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