A obra de Fernando Pessoa (1888-1935), que tem os 130 anos de seu nascimento celebrados nesta quarta-feira (13), está longe de esgotar-se. O pesquisador português Nuno Ribeiro, que juntamente com a pesquisadora brasileira Cláudia Souza publicou este ano “Fernando Pessoa e o Epicuarismo” (ed. Apenas Livros), revela, inclusive, que “mais da metade dos escritos pessoanos carecem de publicação”.
Segundo ele, o verdadeiro desafio que a obra do poeta, tradutor, dramaturgo e crítico literário levanta consiste em recolher, transcrever e publicar aquilo que ainda se encontra por conhecer do universo literário pessoano. “Eu e a Cláudia publicamos dois importantes projetos nesse sentido. O primeiro foi ‘The Transformation Book’ (publicado em 2014, nos EUA), que consiste num livro planejado por Fernando Pessoa, por volta de 1908, e que reúne textos em inglês, português e francês, atribuídos a quatro pré-heterônimos pessoanos: Alexander Search, Jean Seul de Méluret, Pantaleão e Charles James Search. O segundo foi o livro ‘Charles Robert Anon: Escritos de uma Personalidade Pessoana’, que apresenta os textos de uma personalidade inglesa de Fernando Pessoa”, diz Ribeiro.
“Galáxia heteronímica”. Pessoa deixou uma obra calcada em múltiplas vozes, tendo em vista a “galáxia heteronímica” – termo criado por ele mesmo –, construída pelo poeta, tradutor, dramaturgo e crítico literário português. Essa expressão se refere a várias personas de sua autoria, sendo as mais conhecidas Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis, por meio das quais assinou muitos de seus escritos.
Para Sabrina Sedlmayer, professora do curso de letras da UFMG e especialista em literatura portuguesa, essa é uma das principais expressões da potencialidade criativa do autor, que inaugurou estratégias e processos caros à literatura contemporânea. “Com tantos nomes próprios, estabelecendo esses jogos e embustes, Pessoa permitiu a exploração de muitas possibilidades em torno da questão da autoria”, pontua Sabrina, que percebe reflexos nítidos desse aspecto da escrita de Pessoa no presente. Um exemplo lembrado por ela é a condição misteriosa da identidade da autora italiana Elena Ferrante, cuja tetralogia é um sucesso de vendas no mundo.
“A autoficção que tanto é comentada hoje já está lá em 1914, quando Pessoa cria Alberto Caeiro, Álvaro Campos e Ricardo Reis”, acrescenta a professora.
Além dos heterônimos mais conhecidos, há estudos que mostram que Pessoa pode ter concebido mais 72 ou 127 nomes. Esse número diverge, de acordo com os critérios usados pelos pesquisadores. O primeiro foi sugerido pela especialista portuguesa Teresa Rita Lopes, na década de 90, e o segundo pelo brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, autor do livro “Fernando Pessoa: Uma Quase Biografia” (2010).
Fragmentos. Outro traço sublinhado por Sabrina que permite paralelos entre a produção literária contemporânea e o legado de Pessoa é a noção de fragmentação. A seu ver, esta tem papel central, principalmente na obra-prima “Livro do Desassossego” (1982), de publicação póstuma.
“Vale lembrar que esse é o livro em que Pessoa mais trabalhou, porque ele deixou de escrevê-lo apenas quatro dias antes de morrer. E nesse ele lida com uma forma fragmentária que eu acho que é muito contemporânea, no sentido de que ele não queria fazer um livro com enredo, um objeto fechado, e sim basear-se em fragmentos completamente descontínuos. Ele escrevia em qualquer material, como em papéis de contas de bar”, comenta Sabrina.
Cláudia Souza reforça como a literatura pessoana “retrata aspectos do homem pós-moderno, que perdeu a crença em um eu absoluto e uno”. “O projeto do ‘Livro do Desassossego’, por exemplo, mostra o tédio do homem citadino ao mesmo tempo em que revela um livro em busca de um autor, pois esse projeto teve três fases e três autores distintos em cada uma delas: Fernando Pessoa mesmo, Vicente Guedes (personalidade pessoana) e Bernardo Soares (semi-heterônimo), ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa”, completa a escritora e pesquisadora brasileira.
Relações de Pessoa com o epicurismo
O livro “Fernando Pessoa e o Epicurismo”, de Cláudia Souza e Nuno Ribeiro, publicado pela editora portuguesa Apenas Livros, oferece um estudo introdutório sobre as possíveis conexões entre os escritos de Pessoa e a corrente de pensamento desenvolvida pelo filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.).
A obra reúne textos concebidos pelos autores, mas também transcrições de documentos pertencentes ao espólio de Pessoa e, às vezes, atribuídos a outros autores criados por ele.
Para Cláudia, refletir sobre a questão permite identificar como a vertente filosófica foi importante para a construção poético-literária pessoana. “A filosofia epicurista lida por Fernando Pessoa vai transbordar na escrita de seus outros eus. David Merrick, Charles Robert Anon, Alexander Search, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e António Mora, personalidades literárias pessoanas, foram influenciados pela filosofia epicurista, como mostramos através da transcrição de documentos do espólio dele”, diz Cláudia.
Ribeiro, por sua vez, reforça como o epicurismo em Pessoa reflete-se, principalmente, na voz do heterônimo Ricardo Reis. “A filosofia de vida de Reis é caracterizada por Pessoa como um ‘epicurismo triste’. Isso é também discutido por outras personalidades pessoanas, como é o caso de Frederico Reis, um suposto irmão de Ricardo Reis a quem Pessoa atribui a autoria de um importante texto sobre Reis”, afirma Ribeiro.
O Tempo
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