sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

O carnaval dos bichos


 Amadeu Garrido de Paula

O insólito óbvio, logo dirão. Contudo, a todo tempo nos comparamos com os animais irracionais. Nosso cérebro maior. Nosso desenvolvimento. Nossa vida que objetiva o futuro. Nossos maneirismos, também presentes em alguns animais domésticos; é dizer, sempre nos comparamos, para destacar as distinções ou as semelhanças.

Logo, falar de carnaval dos bichos é uma grande contribuição ao pensamento sobre nossa própria vida.

O carnaval do homem é um momento em que se une o alegórico, a arte plástica, os poemas e as músicas; além disso, é a demolição do muro, a admissão do que transpõe a liberdade convencional, a licenciosidade da nudez e do sexo sem futuro, é dizer, daquele que não obedece à vontade superior que conduz à reprodução e à perpetuação da espécie. A constatação diz respeito especialmente às mulheres,  atadas à sobrevivência do homo sapiens, ainda que relutem, briguem e procurem redefinir seu papel na sociedade, com justiça;  porém, não há como protestar contra a biologia,  como fugir de seu papel reprodutor e, por consequência, de impedir que a humanidade morra, a partir da gestação e dos primeiros momentos de aleitamento. Essa responsabilidade por manter a fluência contínua da humanidade não está presente no espírito dos homens. Pelo contrário, quando se vêm as guerras destruidoras, em sua grande maioria determinadas pelos seres masculinos.

Além do sexo sem futuro e sem responsabilidade, do mero prazer, cuja natureza tipicamente humana não há de ser contestada,  especificamente na conduta das mulheres, corre, senão para todos, o sentido bíblico que não passaria pelo crivo crítico de Spinoza. O carnaval é a festa, é a fruição alegre, que seria um meio compensatório do amargor, a exemplo da última ceia. Nada menos exato, diria nosso filósofo. Deus não é um comerciante que vive fora de nós e conosco celebra negócios. Nada nos exige e também não nos dá recompensas. Simplesmente compartilha de nosso destino, porque o traçou, assim como sua própria existência. Somente na religião judaico-cristã tem lugar esse mecanismo compensatório à luz do puramente material; depois da tempestade, a bonança; depois do carnaval, as penitências da quaresma, como se nosso mundo fosse uma grande bolsa de valores. Não constatamos esse troca-troca indecente nos fundamentos das demais religiões.

Passado o momento, volta-se à vacuidade, à reflexão, à "obrigação" de conservar a espécie, para além dos limites individualmente inevitáveis, porque sabe-se de nossa mortalidade. Não demora o tédio, porque essa compensação sempre nos parece injusta. A felicidade é muito mais fugaz que as agruras das dores e dos deveres. Passado algum tempo, o momentum do prazer recai às brumas do passado, tanto mais espessas quanto mais tortuosas as ruelas de nossa memória.

Os bichos não estão nem aí para dar sequência às suas espécies por meio de novas gerações. Não têm nenhuma ideia de que são mortais. Portanto, nada precisam dar para gozar alguns dias de folia. Sua folia não cessa. Ocorre todos os dias. Talvez seja uma pálida antevisão do eterno. Não têm nada a transacionar, a não ser defender-se e à sua prole para sobreviver, demarcar seu território, um elementar instinto de propriedade como meio de subsistência. Sem morte, não há como ter ideia de tempo, definir o calendário carnavalesco. Simplesmente seguem a vida, que também não é só prazer: vide a importância dos dromedários e cavalos a levar o homem no lombo para enfrentar o espaço.

Nesse momento nos desgarramos do futuro obrigatório. Talvez por isso a quarta-feira de cinzas seja tão triste e, não raro, violenta. Nela voltamos à consciência de que somos seres condicionados pelo tempo e espaço - amigos ou inimigos. Enquanto isso, os bichos prosseguem em seu carnaval da eternidade.


Amadeu Garrido de Paulaé Advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.

Esse texto está livre para publicação.

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