quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

A História de Guinevere

CINEMA

PUBLICADO EM 02/02/17 - 03h00

Indicado a três Oscars, “Jackie” revela a mulher por trás do mito, responsável pela consolidação do legado Kennedy







DANIEL OLIVEIRA
No caminho entre o hospital e a Casa Branca, levando o caixão do marido, Jackie (Natalie Portman) pergunta a seu motorista se ele sabe quem são James Garfield e William McKinley. A resposta é “não”. Em seguida, ela questiona se ele se lembra de quem foi Lincoln. A resposta é “sim”. Os três são presidentes norte-americanos que morreram durante o mandato. Imediatamente, ela informa ao cunhado Bobby Kennedy (Peter Sarsgaard) que deseja todos os livros sobre o funeral de Lincoln assim que chegarem em casa.
A cena diz tudo que você precisa saber sobre “Jackie”, que estreia nesta quinta-feira (2). O filme do diretor chileno Pablo Larraín (“Neruda”) é a história de uma mulher que, no pior momento de sua vida, toma para si a tarefa de construir um mito, de escrever a história. De uma pessoa que sacrificou sua vida e sua identidade, em nome não de um homem, mas do papel que ele teria na história. E quando esse papel é colocado em risco, ela faz o que tem que ser feito para assegurá-lo.
Mas Jackie é apenas uma primeira-dama – e qual é o papel de uma primeira-dama? Que poder ela tem, especialmente em 1963? O de planejar cerimônias, de organizar um espetáculo que permita que a mensagem de seu marido seja devidamente executada. E se é esse o arsenal que ela tem a sua disposição, é ele que a protagonista vai usar para fazer do funeral um espetáculo que eternize o legado de John F. Kennedy (Caspar Phillipson) na história.
O roteiro de Noah Oppenheimer, premiado em Veneza, alterna entre esses preparativos, nos dias que se seguem ao assassinato do presidente; a entrevista que Jackie concedeu a Theodore White (Billy Crudup), da revista “Life”, uma semana após o velório; e uma consulta espiritual da protagonista com um padre (o já saudoso John Hurt), dias depois. Ao saltar entre um e outro, o que “Jackie” revela é uma mulher extremamente inteligente e obcecada por recontar e registrar a história.
Larraín insere ainda a reencenação de um especial da primeira-dama para o canal CBS em que ela apresentava a restauração que fez da Casa Branca durante um ano, comprando e trazendo de volta mobílias e objetos simbólicos de cada presidente que viveu ali. E ele deixa claro como Jackie Kennedy não era um ícone de estilo por vaidade: e sim, porque entendia como imagens e objetos – roupas, cenários, festas – contam uma história.
E o que nós lembramos hoje não é a verdade, e sim a história – o livro, o filme, a foto, o quadro. Quase ninguém hoje estava vivo durante o governo Kennedy – um presidente que, como o próprio irmão assume, não teve tempo de vencer a luta pelos direitos civis nem a corrida espacial, sem um legado político sólido.
Mas se o padre diz a Jackie que “Deus não está interessado em histórias, e sim na verdade”, ela sabe que o público é o contrário. Ele quer uma narrativa com um herói, emoção, dor, vítimas, dignidade. E é isso que ela lhes dá ao andar com os filhos na frente do caixão em procissão fúnebre, e ao lembrar, na entrevista, a canção de “Camelot”, o musical favorito do marido – “don’t let it be forgot that for one brief shiny moment there was Camelot” (não se esqueçam que por um breve e cintilante momento, houve Camelot). “Haverá outros grandes presidentes, mas nunca haverá outra Camelot”, ela afirma.
Com essa declaração, Jackie criou a mitologia pela qual a administração Kennedy é lembrada até hoje nos EUA: Camelot. E o mais impressionante do monstruoso “tour de force” de Natalie Portman é que a atriz nunca esquece que a personagem estava fazendo isso enquanto sentia uma das piores dores imagináveis. Seu trabalho capta essa performance de uma mulher constantemente sendo sugada pelo abismo de seu luto e imediatamente lembrando que precisa ser Jackie Kennedy, a primeira-dama de uma nação em luto e mascarando seu sofrimento – seu medo do esquecimento, da insignificância, de suas inseguranças – com cigarros e remédios e álcool.
E é por traduzir essa mesma complexidade que a trilha musical de Mica Levi é simbiótica e fundamental para o filme. Seus acordes incorporam ao mesmo tempo a época dos anos 60, o caos pós-assassinato e a dor de Jackie.
O que vem a ser o mesmo malabarismo equilibrado na direção de Larraín. O cineasta resgata a época na granulação da imagem, mas usa enquadramentos diferentes para cada momento da protagonista: uma câmera mais solta e caótica no luto durante os preparativos; um enquadramento engessado e televisivo no vídeo da CBS, ressaltando a imagem posada do ícone Jackie; e um plano e contraplano fixo, bem-enquadrado, na entrevista, mostrando uma mulher emoldurando a história.

Acima de tudo, porém, o chileno ressalta seu talento para extrair atuações de potência e explosão teatral dentro de closes fechados – especialmente nas cenas com o padre. Porque é só neles que Jackie se sente à vontade para revelar a verdade – ao repórter, ela reserva a história.
O Tempo

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