Quando o carioca Rafael Cardoso tinha 16 anos, logo antes de uma viagem à casa dos avós, em São Paulo, sua mãe lhe chamou no canto para explicar a verdade sobre a família do seu pai. “Foi uma coisa muito bizarra. Minha mãe, que é mineira e não tem nada a ver com a história, por algum motivo foi incubida de me contar. E falou: ‘Sua avó nasceu judia, seus bisavós são alemães, seu bisavô foi um dos homens mais ricos de Berlim. E você não pode contar nada pra ninguém’. A minha reação foi ficar chocado e depois rejeitar completamente”, lembra.
Décadas depois da revelação, Cardoso transformou a história no romance “O Remanescente”, que foi selecionado nesta semana como boa aposta de adaptação para o cinema pelo Books at Berlinale, painel do Festival de Cinema de Berlim. A obra será apresentada, a partir de 9 de fevereiro, para os realizadores presentes no festival, ao lado de relatos de outros 11 autores de oito países.
Só que, entre a descoberta da história da família e o reconhecimento do primeiro romance de Cardoso pelo festival, o caminho foi longo. Até a mãe revelar sua origem, Cardoso acreditava ser descendente de franceses, uma vez que seu pai nasceu no país. Foi só aos 23, após a morte dos familiares, quando ele foi organizar o apartamento dos avós, que entendeu a complexidade da sua origem.
“De repente, descobri que não tinha mais ninguém para me contar essa história. Eu não tinha como ler os documentos que achei, porque era tudo em alemão, mas tinha fotos do Einstein, cartas de Thomas Mann, e guardei o material. E isso foi o início desse trabalho de pesquisa. Eu levei 25 anos para começar a escrever o livro. É um processo de descoberta. Você vai aceitando uma verdade que as pessoas esconderam durante muito tempo”, conta Cardoso.
História. Aos poucos, ele se aprofundou na pesquisa, indo além do relato da mãe, e descobriu que seu bisavô se chamava Hugo Simon (e não Hubert Studenic) e era um rico banqueiro judeu que chegou a ocupar o posto de ministro das Finanças da Prússia, época que se tornou amigo de Albert Einstein. Foi na casa dele e de sua bisavó, Gertrud Oswald (que mais tarde virou Garina Studenic), que Thomas Mann comemorou seu Nobel de Literatura em 1929.
Isso até que, assim como aconteceu com tantas famílias judias na Alemanha, a ascensão de Hitler os obrigou a fugir do país. Eles chegaram a morar alguns anos na França, onde a filha de Hugo e Gertrud, Ursula, e seu marido, Wolf Demeter, criavam o filho Roger, pai do autor. Porém, com a chegada do nazismo na França, toda a família teve que buscar exílio ainda mais longe, encontrando abrigo no Brasil, onde foram obrigados a mudar de identidade para escapar do Estado Novo, que se alinhava com muitos dos interesses nazistas. E, na tentativa de deixar o passado na Europa, evitaram falar sobre a própria história.
“É uma coisa muito difícil para quem viveu o que eles viveram. Você tem que abraçar a vida nova, se não, vai ser infeliz. É uma história-ponte, de contato entre duas culturas”, diz Cardoso, que atualmente mora em Berlim e lançou o romance simultaneamente em português e alemão. Ele ainda explica que conta a história como um romance – e não como uma biografia – porque não queria que o leitor se deparasse apenas com dados e nomes e datas, mas se sentisse no lugar de quem perde tudo e precisa se reinventar do nada. “O exílio gera exílio”, explica.
O Tempo
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