Vittorio Medioli
PUBLICADO EM 21/05/17 - 03h00
Quando visitei Varanasi, às margens do rio Ganges, num amanhecer de 1999, passei no meio de milhares de pedintes com deficiências, com doenças terríveis que persistem na Índia, e de idosos maltrapilhos sem voz e sem vez. Todos à procura de esmolas para sobreviver.
Daquela multidão sofrida, na penumbra que antecipa o alvorecer, me restam sensações vívidas e indeléveis. Que mundo era aquele? Explicou o nosso guia que os costumes naquela fração de planeta tinham razões históricas e religiosas, muito distantes do modo ocidental de viver.
À beira do rio, naquele exato ponto de seu curso, entre a nascente no Himalaia e seu fim no golfo de Bengala, a lenda faz crer que quem ali for incinerado após a morte terá facilidade no além para que seu espírito siga aceleradamente adiante.
Em Varanasi se encontram palácios dourados erguidos pelas mais opulentas famílias de marajás nos últimos séculos. Residências com enormes varandões voltados para as águas do ponto mais sagrado do rio. Ainda templos que servem de crematórios se descortinavam aos primeiros raios do sol, passando de barco ao longo da margem direita, mostrando um extraordinário cenário de milhares de peregrinos adentrando nas águas com suas oferendas.
As águas que nascem límpidas no Himalaia nessa altura são assustadoramente turvas, mesmo assim servem para matar a sede dos fiéis, apesar de carcaças de animais e resíduos de toda ordem transitarem a caminho de Bengala. O guia explica que por concessão dos deuses as águas são potáveis, ele mesmo leva a mão cheia para a boca, e que ali nunca ninguém morreu por contaminação.
Enxergavam-se as dezenas de fogueiras incinerando cadáveres que chegavam do mundo hinduísta. Aos que podem pagar uma fortuna é reservada a lenha dos raros sândalos que restam no país, aos outros, lenha comum, e aos menos afortunados, o forno alimentado a gás. Mas, seja qual for o combustível, as cinzas são lançadas nas mesmas águas com flores e velas.
Por que queimar? Segundo a doutrina, permite-se que o corpo etérico (energia), o astral (desejos e paixões) e o mental (pensamentos inferiores) não se fixem em volta do cadáver em decomposição, e assim, com maior celeridade, permite-se ao espírito um caminho melhor.
Nosso guia, querendo merecer seus honorários, explicou que os “corpos” dos que morrem de varíola não são queimados, pois nessa doença tem a presença da deusa Salitã, e os corpos enfaixados na posição sentada são afundados na parte mais profunda do Ganges. Seriam eles, pela graça da deusa Salitã e pelos méritos pessoais, já livres da pior parte do carma e a caminho da desencarnação derradeira.
Atendendo as perguntas, e com extrema naturalidade, deu uma aula sobre a dor como um acelerador da evolução, e como a deusa premia os merecedores por meio da varíola. Obviamente é fácil na realidade hinduísta, dilatada em milhares de reencarnações, minimizar uma vida como um dia perdido num ano.
Sofrer faz bem! No sofrimento deve-se encontrar a melhor atenção divina. A doença ou a derrota devem ser respeitadas como dom precioso, uma aceleração, um reconhecimento de méritos, e assim devem ser aceitas quando chegam.
Nessa explosiva situação da última semana, mais que razões de desespero, podemos encontrar os sinais da aceleração de um processo evolutivo. A queima de um sistema, que deixou o Brasil apequenado, atrofiado e sofrido em relação a sua potencialidade e a seu incensado destino, está espantando seus fantasmas.
Na Índia atual as viúvas não são obrigadas, como era tradição antes das reformas de Gandhi, a lançar-se às chamas que devoram o cônjuge falecido (para com ele se transformar num só amontoado de cinzas), basta assumir um luto e seguir adiante.
O Brasil em lágrimas, e aquele indignado, pode também comemorar o fim de um ciclo, a libertação da praga da corrupção, o enfraquecimento da burocracia e do patrimonialismo. Pode assim, aliviado, partir para uma era mais próspera. Quando se apagam as tochas, um novo dia vem raiando.
O Tempo
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