TIRADENTES. Duas décadas de trajetória são comemoradas na 20ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, o que a torna emblemática para se reconhecer a relevância conquistada por um projeto inicialmente permeado por desconfianças, como recordou Raquel Hallak, idealizadora do festival, na abertura do evento, na sexta-feira passada. Mas se o momento é de celebração, o curador Cleber Eduardo ressaltou como o presente exige “uma celebração crítica”. “Não há só o que comemorar, mas também a se preocupar com o futuro”, apontou em relação aos acontecimentos políticos mais recentes do país.
De fato, esta tônica vem se sobressaindo desde o começo do encontro, quando uma linha do tempo projetada na Cine Tenda, em razão da cerimônia de inauguração, lembrou diversos fatos marcantes de 1990 a 2017. Entre eles o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e o massacre, ocorrido neste mês, no presídio de Manaus, que resultou em 56 mortos. Ao fim da apresentação, a plateia se manifestou gritando “Fora, Temer!”.
A pauta ligada à luta pela igualdade de direitos também tem sido constante nos encontros, seja por meio dos debates ou das projeções de filmes. Um dos momentos representativos dessa discussão foi a mesa de sábado, que reuniu Helena Ignez e Leandra Leal, atrizes e diretoras homenageadas neste ano. Leal, que fez sua estreia na direção com o documentário “Divinas Divas”, exibido na abertura da mostra, compartilhou um pouco da sua experiência no cinema, assim como Ignez, sem deixar de pontuar os desafios enfrentados pelas mulheres num segmento ainda dominado por homens.
“Além de termos que ter uma representatividade maior no cinema, a gente tem que contar mais as nossas histórias, sob o nosso ponto de vista. Esse é o caminho. Da mesma forma que tem que ter mais representatividade feminina na política”, frisou Leal, que comentou a ausência de diretoras nas parcerias que já travou em sua carreira.
Leal também lembrou que 21% dos filmes inscritos no festival são produzidos por mulheres. No total de produções que entraram na programação, esse número salta para 41%. Cleber Eduardo, contudo, já havia comentado que em edições anteriores, a Mostra de Tiradentes registrou 33% obras de autoria feminina, porém num contexto de volume menor de trabalhos.
Apesar dessa constatação, Helena sublinhou como isso é algo para ser valorizado. “É um grande acontecimento estarmos aqui. No cinema de invenção, feito nos anos 70, 80 não tem mulher nenhuma. Havia um desejo de liberação feminina, mas por meio do olhar do homem, o que foi uma coisa pavorosa. É só ver esses filmes para perceber o resultado”, comentou Helena, que reforçou a importância de se valorizar algumas conquistas.
“Pelo menos saímos da fogueira e não seremos mais queimadas. Mas muita coisa já aconteceu. Tentaram fazer de tudo comigo. Só não me tiraram o clitóris. A história é de uma violência total. Hoje vejo como uma grande festa existir essa Mostra de Tiradentes em que a gente pode estar falando com vocês. Para uma mulher que fosse atriz e resolvesse dirigir nos anos 50, 60, 70 era algo quase impossível. Lembro agora de Helena Solberg, mas fora ela não existia. Não se acreditava que a mulher pensasse. Não tínhamos voz, o próprio Cinema Novo era de uma masculinidade muito opressiva”, completou Helena.
As atrizes e cineastas também trocaram elogios mútuos e falaram dos diálogos no projeto “Operação Sônia Silk”, de Leandra Leal, Bruno Safadi e Ricardo Pretti, que contempla uma trilogia de filmes (“O Rio nos Pertence”, “O Uivo da Gaita” e “O Fim de Uma Era”) e teve como inspiração as ações da produtora Belair, fundada por Rogério Bressane e Rogério Sganzerla, na década de 1970.
“Nós somos muito fãs da Ignez, nós revemos os filmes da Belair, o próprio nome, ‘Operação Sônia Silk’, é uma homenagem ao personagem de Ignez em ‘Copacabana Mon Amour’. Quando entramos nessa proposta, a ideia era tentar viver algo que a gente não viveu e ter uma experiência radical, amorosa e cinematográfica como aquela que o Sganzerla e o Bressane tiveram na Belair”, diz Leandra.
Ignez, por sua vez, relatou a felicidade de ter participado do projeto. “Eu fiz a voz da personagem de Leandra Leal no último filme da trilogia “O Fim de Uma Era”. Recebi esse convite com muito carinho e para mim ter participado do filme representou o encerramento de um ciclo, ‘o fim de uma era’. Agora estamos todos fazendo esse novo cinema, o cinema contemporâneo”, conclui Ignez.
Mostra Aurora
Inéditos. A Mostra Aurora, que exibe filmes inéditos de cineastas em começo de carreira, começa nesta segunda-feira (23), às 19h30, com o longa mineiro “Baronesa”, de Juliana Antunes.
TIRADENTES. O coletivo Elviras vai participar nesta segunda-feira (23) da mesa “As Mulheres na Crítica: Cenário Brasileiro”, que integra a programação da Mostra de Tiradentes. Criada em 2016, por meio do diálogo entre críticas de cinema, jornalistas e pesquisadoras, a iniciativa pretende abrir espaço para que seja discutido a atuação das críticas de cinema, curadoras e diretoras no país.
Samantha Brasil, uma das fundadoras do projeto, explica que a proposta surgiu a partir da percepção da escassez de autoras participando como críticas de cinema em veículos e eventos especializados, e o próprio nome é do grupo homenageia uma pioneira nesse segmento.
“Elvira Gama foi a primeira mulher que escreveu sobre cinema no Brasil. Ela tinha uma coluna em que ela cobria outros assuntos também, e a intenção é recordar essa história, reunir outras mulheres que também estão escrevendo em várias partes do país, mas que estão invisibilizadas. Nós queremos conhecer e dialogar com elas”, afirma ela.
Cecília Barroso completa que, depois de fazerem os primeiros encontros virtualmente, a primeira ação aconteceu no Festival de Brasília, no ano passado. “Depois, nós repetimos isso no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Salvador, onde as alunas da oficina de crítica participaram e foi muito bacana. Nossa intenção é contribuir para trocar conhecimentos e formar novas críticas também”, completa Barroso, também fundadora.
A crítica Flávia Guerra sublinha que a adesão das pessoas tem sido rápida e revela o grande interesse pela questão. “Nós lançamos a página na última quinta-feira e em dois dias teve mais de 900 curtidas no Facebook. Houve uma resposta imediata das mulheres e nós queremos reunir não só aquelas que escrevem, mas que distribuem filmes ou fazem curadoria. Várias pessoas tem parabenizado a proposta que, na verdade, é óbvia. A demanda está aí, só precisasse que alguém a suprisse”, conclui. (CAS)
O Tempo
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