O Tempo
“ATÉ O ÚLTIMO HOMEM”
Retorno de Mel Gibson à direção foi indicado a seis Oscars, incluindo filme
PUBLICADO EM 26/01/17 - 03h00
DANIEL OLIVEIRA
A certa altura de “Até o Último Homem”, que estreia nesta quinta-feira (26), o protagonista Desmond Doss (Andrew Garfield) sintetiza bem seu motivo para curar, ao invés de matar, pessoas na guerra: “com o mundo tão determinado a se destruir, não parece má ideia tentar reconstruí-lo um pouco”. E o grande problema do longa é que, se a ótima atuação de Garfield capta esse espírito quase perfeitamente, não se pode dizer o mesmo do roteiro e da direção de Mel Gibson.
Doss não queria matar japoneses porque – inimigos ou não, bons ou maus – ele os via como seres humanos. E, religioso, acredita no mandamento “não matarás”. Já Gibson não concede essa mesma cortesia ao exército nipônico. Sem rostos nem personalidade, os soldados japoneses são (mal) retratados como assassinos sanguinários, inimigos a serem destruídos – mesmo sendo jovens com tanto medo quanto Doss e seus colegas.
E essa é a ironia de “Até o Último Homem”. Por mais que o filme mostre uma guerra cinzenta na bela fotografia de Simon Duggan, Gibson não enxerga em tons de cinza: seu cinema é preto e branco, bons e maus, mocinhos e vilões, uma fórmula que pode agradar pais, tios e avôs, mas soa ultrapassada em 2017.
A trama é baseada na história real de Desmond Doss, que, mesmo pacifista convicto, alistou-se na Segunda Guerra. Adventista do Sétimo Dia, ele usa sua religião como justificativa para se recusar a tocar em armas e atuar como paramédico no front. E, superando a resistência de todos os seus comandantes, acabou se tornando um herói durante a Batalha de Okinawa.
Assim como o recente “O Nascimento de uma Nação”, o longa se alicerça no discurso de um homem que usa Deus para justificar algo que é moralmente correto. Gibson carrega nessas tintas eclesiásticas, enquadrando o céu sempre que possível para marcar essa presença divina na figura de Doss. Só que, por mais que essa premissa “bom por causa de Deus” seja coerente, dada a religiosidade do protagonista, ela corre o risco de alimentar os atuais fundamentalistas, machistas e racistas de extrema direita que acham que qualquer coisa que façam se torna boa se citarem Deus.
Menos justificável, porém, é a típica carnificina do cinema de Gibson – fascinado com violência, e competente ao filmá-la. Mas num longa sobre um pacifista, a estilização e o detalhamento mórbido com que ele encena as batalhas soam deslocadas.
Isso porque “Até o Último Homem” não retrata a guerra real, mas sim a “guerra do cinema”. Dos diálogos patéticos do sargento Howell de Vince Vaughn – confundindo overacting (junto com Hugh Weaving e Sam Worthington) com homenagem ao clássico sargento Hartman de “Nascido para Matar” – à edição de som e efeitos impecáveis, Gibson está mais interessado em reproduzir o imaginário cinematográfico da guerra do que a realidade vil e imperfeita do conflito. Os minutos iniciais de “O Resgate do Soldado Ryan” são geniais exatamente porque são imperfeitos, caóticos.
O resultado não é um filme pacifista, como seu protagonista, e sim um tratado sobre como você pode ser uma pessoa boa e, ainda assim, ir para a guerra. Sobre norte-americanos maus, mas de bom coração, e japoneses maus sem coração, com uma Segunda Guerra que (óbvio) não cita judeus, um primeiro ato familiar fraco e um flashback desnecessário para explicar a recusa de Doss.
Mas o longa é uma perda total? Não, devido a um rapaz chamado Andrew Garfield. Em seu olhar sincero, sua postura meio jeca e seu humor antiquado, o ator capta perfeitamente não só a bondade inata de Doss, mas a ingenuidade do cinema e da época que Gibson quer resgatar. “Até o Último Homem” é o que quer ser quando dá a Garfield a chance de trazer isso à tona, como na sequência que revela o feito de Doss em Okinawa – um ato cuja humanidade Gibson não compreende totalmente, mas nem assim consegue arruinar.
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