segunda-feira, 24 de julho de 2017

Um sonhador profissional

Romancista, cronista, dramaturgo e compositor, o angolano José Eduardo Agualusa é um dos escritores mais prolíficos da língua portuguesa hoje. Em “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, seu romance mais recente, ele acompanha quatro personagens dos mais diversos cantos do mundo lusófono que se cruzam por meio de suas inusitadas relações com os sonhos. De passagem por Belo Horizonte para divulgar o livro no Sempre um Papo – nesta segunda-feira (24), às 19h30, no auditório da Cemig – ele conversou com o Magazine sobre como ele surgiu, seu processo criativo e o que falta à literatura brasileira hoje. 
Seu livro novo explora o universo dos sonhos. Qual é sua relação pessoal, e da sua literatura, com o sonhar? Ele te inspira?

Sonhos fazem parte do meu ofício. Minha relação com eles é, de certa forma, profissional. Eu sonho muitas vezes com os títulos dos meus livros. “A Vida no Céu” me surgiu em sonho, e o livro todo se organizou em volta do título. Sonho com diálogos, personagens – às vezes, até com enredo. Os sonhos sempre me ajudam a escrever. Resolvo situações enquanto sonho.
E quando você decide escrever sobre um tema, como os sonhos, o quanto você se debruça sobre ele, o quanto pesquisa, para além da literatura?

Quando escrevo um romance histórico, sobre personagens reais, como o “Rainha Ginga”, por exemplo, evidentemente tenho que fazer essa pesquisa. Já “A Sociedade dos Sonhadores” é mais da família de “O Vendedor de Passados” – livros que partem da realidade, mas têm espaço para a poesia. Uma relação com o poético, o maravilhoso, um pé no real, mas são ficção pura. No caso desses livros, nem sempre tenho que investigar tanto. Mas acho que qualquer romance obriga o escritor a estudar. Estamos sempre a estudar. Os personagens nos levam, nos arrastam, um bocadinho. E nós temos que documentar esse bocadinho. Nesse caso específico, tive que ler sobre sonhos, mais no plano científico, mas não apenas.
O livro acompanha quatro personagens que se cruzam por meio dos sonhos. Qual deles foi o mais difícil de escrever?

Talvez não o mais difícil, mas o mais complexo, tenha sido o hoteleiro, Hossi Kaley. Ele é o mais dilacerado deles. Um personagem com um passado difícil, é um antigo torturador. E ele nunca consegue se separar totalmente desse passado. Esse tipo de personagem é sempre mais interessante de explorar. E eu acho que ele cresceu muito no livro. É ele que conduz a trama, até mais que o narrador principal.
O que você leu, ou viu, que te influenciou durante a escrita do livro?

O romance parte de uma discussão concreta, que é a Primavera Árabe e o reflexo que ela teve em Angola. Comecei a escrever pelo insight de um vídeo do Luaty Beirão – um famoso rapper angolano, convidado da Flip neste ano – que circulou bastante na internet. Quando explodiu a Primavera Árabe, ele fez uma intervenção durante um show, com um discurso bastante agressivo contra o projeto de país que o regime da época em Angola estava botando em prática. Ele se dirigiu diretamente ao presidente, que estava presente no show, na frente de milhares de jovens, com um discurso absolutamente inflamado contra o regime. Isso teve um impacto enorme em Angola, e ficamos com a sensação de que o regime iria cair no dia seguinte – o que não ocorreu. Mas aquele vídeo, de fato, teve um impacto enorme em mim, e comecei a escrever sob o efeito dessa fala.
Nos últimos tempos, você escreveu quase um romance por ano. Escrever, para você, é fácil, rápido?

Não é fácil, nem rápido. Comecei escrever “A Sociedade” há seis, sete anos, e abandonei para escrever outros livros. Voltei há dois, e demorei um ano e meio para terminar. Não é fácil, mas é sempre apaixonante. É sempre importante ter algo de mágico, inexplicável, que continue a me fascinar, a me entusiasmar hoje, como no início da minha carreira. Escrevi com a mesma paixão, deslumbramento talvez seja a palavra certa, que escrevi os anteriores. Quando começo um livro, nunca sei o que vai acontecer. Escrevo para saber. Esse processo de quando o romance vai tomando forma é sempre um deslumbramento para mim.
Escrever crônicas semanalmente para um jornal ajuda nesse ritmo, nessa agilidade? 

Acho que é preciso, primeiramente, paixão para escrever um romance. Você precisa estar apaixonado por uma ideia. E, depois, disciplina. Porque, sem ela, você não termina um romance. E crônica demanda disciplina. Escrevo crônicas há bastante tempo. Sempre me ajudaram muito. Primeiro, como exercício de disciplina, e depois quase que como notas literárias. Há situações, frases e personagens que surgem numa crônica e que eu retomo depois em um romance. A crônica me permite explorar determinadas situações para perceber seu potencial literário. Funciona quase como um caderno de apontamentos.
Um livro afeta o outro? Se acabou de escrever algo sombrio, procura por algo mais solar?

Para mim, o que me entusiasma é escrever algo diferente. Algo que seja um desafio e que, no início, eu sinto que não consigo fazer. Se escrevo algo histórico como o “Ginga”, em seguida não sinto vontade de fazer algo assim. Depois de resolver esse desafio, que eu achei que nunca conseguiria terminar, quero fazer algo diferente. Sempre penso em projetos que eu não tenha feito antes.
E quantas vezes, em média, você reescreve um capítulo, ou uma página? 

Eu escrevo para saber o fim. E nesse sentido, vou ter que recuar o tempo inteiro. À medida que o livro avança, ele vai modificando o passado. Estou constantemente a reescrever. Até a última página, estou reescrevendo. Porque, como não tenho uma estrutura prévia me guiando, a história vai modificando também o que vem antes – quando eu começo, não sei o que ela é. Tenho apenas uma ideia vaga, um assunto, um tema. Normalmente, tenho um narrador. Ele vai me indicar o caminho, dar origem e iluminar os outros personagens. E são eles que vão construindo a história. O que faço é seguir os personagens e documentar o que eles vão apontando. Deixo que eles me conduzam.
Qual a diferença no seu processo criativo entre escrever um romance, uma peça ou uma música?

Escrevi três peças com Mia Couto e outras duas sozinho. E gosto mais de escrever com outra pessoa. É como jogar xadrez: é mais divertido jogar com alguém, apesar de ser possível jogar sozinho. No caso das peças que escrevi com Mia, foi extremamente divertido. Nós temos um pouco o mesmo processo criativo, ele também não desenha o livro todo antes de escrever. Temos uma ideia do que queremos antes de começar a pensar nos personagens e, depois, a história vai se estruturando, se criando. A essa altura, temos uma intimidade tal que um começa uma frase, e o outro termina. É muito mais interessante e mais rápido do que estando sozinho. Na verdade, gostaria de fazer um romance com Mia. Acho que é possível.
E cinema você fez pouco, tem vontade de escrever roteiros? Ou uma série?

Escrevi a adaptação de um conto em Portugal. Já fiz um primeiro tratamento a partir do “Nação Crioula” para o Andrucha Waddington. E agora estou escrevendo um roteiro para um diretor português radicado no Rio de Janeiro. É o que estou fazendo no momento, a partir de uma ideia original dele e de um tratamento que ele já tinha escrito. É algo mais fácil, mas menos interessante. Para mim, o roteiro perde o que a literatura tem, que é a surpresa. Essa intervenção da poesia, do acaso, no roteiro é mais difícil de acontecer. E é sempre uma construção a várias mãos: o produtor, o diretor, todo mundo intervém na elaboração dele. Você fica mais limitado. No romance, posso fazer o que quero. O que me interessa mais no roteiro são os diálogos.
Como a produção brasileira se encaixa, ou se compara, dentro da literatura de língua portuguesa hoje? 

Acho que o Brasil ainda tem muito espaço para crescer. Portugal deu um salto enorme, como reflexo do desenvolvimento da educação no país. Foi criada uma rede de bibliotecas públicas que é uma das melhores do mundo hoje. E isso explica o bom momento literário de Portugal, tantos autores jovens com tamanha qualidade. Acho que o Brasil é um país imenso carregado de histórias, mas infelizmente o que vemos hoje é ainda o domínio do eixo Rio-São Paulo. É como se o Brasil fosse só os dois Estados – e um pouco Minas, que sempre teve uma tradição, e o Sul. Mas todo o norte do país está meio na sombra. Esse Brasil imenso de São Paulo para cima é carregado de histórias esperando que alguém as conte. Um potencial enorme que só será cumprido quando o país for capaz de levar os livros a seus leitores. E aí está a importância das bibliotecas públicas, das redes de bibliotecas comunitárias, que sempre me comovem muito quando as vejo por aqui porque são projetos de paixão. Quando isso acontecer nacionalmente, em grande escala, quando o Brasil for capaz de levar livros a todas as pessoas – sem elas terem necessariamente que comprar – pode ter certeza de que vocês irão se transformar numa potência literária, como são na música popular. Mas primeiramente, tem que formar leitores. Não existe literatura se não houver leitores. Por trás de um grande escritor, há um milhão de leitores. Foi o que Portugal fez, criou uma rede de bibliotecas públicas exemplar e transformou o país. Existem pessoas apaixonadas que, contra a vontade dos poderes públicos, estão tentando fazer isso aqui. Imagina se todo esse dinheiro mal gasto do governo fosse investido nisso?
E o que você está preparando para o Sempre um Papo aqui em Belo Horizonte?

Esse tipo de evento é importante para eu ter um retorno daquilo que escrevo. Infelizmente, com a crise do jornalismo, houve um quase desaparecimento da crítica literária. E isso é muito prejudicial para um autor, que fica sem retorno de seu trabalho. O que nós temos hoje é o contato com leitores, é onde vou descobrir aquilo que criei. Porque, para mim, um livro só existe a partir do momento em que ele encontra os leitores. Até então, ele não é nada. O próprio escritor só percebe o que fez nesse contato, ele é fundamental.


LANÇAMENTO

“A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (ed. Planeta, 256p., R$ 42)

Quando. Nesta segunda-feira (24), às 19h30

Onde. Auditório da Cemig – rua Alvarenga Peixoto, 1.220, Santo Agostinho
O Tempo

Nenhum comentário:

Postar um comentário