* Amadeu Roberto Garrido de Paula
Talvez, nosso medo superior seja o de olhar ao espelho e ver dois de nós. Não há suporte real a esse medo, aparentemente. Mas, desembrulhado, nosso ser é binário. Torná-los - ambos - peças de teatro e produções de Hollyood, em geral infiéis à pureza original, foi a genialidade incurial de Robert Luis Stevenson.
O mundo, fantástico e paradoxal, faz exsudar sangue às criaturas que encarrega de desvendá-lo.
Stevenson nasceu de família abastada e, por isso mesmo, opressora, como tantas. A natureza frágil e o frio de Edimburgo o fizeram tuberculoso. Assim foram alvos da tempestade orgânica do século dezenove nossos escritores e poetas, qual nosso Álvares de Azevedo.
Deixou, depois de contrariar o pai com o direito à engenharia, a casa que, ao lhe dar tudo, oprimia-o. A binariedade tomou sua vida e talvez tenha lançado o gérmen do médico e o médico, mais conhecidos como o médico e o monstro.
Claramente deve ter sentido que suas ambiguidades deveriam ser expressas, de um modo leve, a tocar a alma de todos, menos ou mais vazios de erudição. Casou-se por amor, outra terrível dualidade, com uma mulher dez anos mais velha, e adotou sua filha. Foi parar no mundo antípoda de seu nascimento, Samoa, um ilha dos trópicos. O mundo o fez calar-se, já o tinha desnudado muito, e insistia em fazê-lo, com novo escrito em curso, lá na terra longínqua.
A mensagem é que todos nós somos duais ou binários. Para desilusão da psicologia e suas duplas personalidades, que nos são inerentes, ao fim e ao cabo. Não é verdade que, depois de criar uns versos sociais, negamos esmola a um pequeno esquálido e outras criaturas similares, no primeiro cruzamento? Não é verdade que, ao olharmos uma jabuticabeira, somos nós e a jabuticabeira? Não nos transformamos, dialogamos com seres desconhecidos, em nossos sonhos?
Por isso é que o panteísmo - nós e o universo somos unos - não se nos desliga, para o bem ou para o mal. Tentamos justificar. "Faça o que digo, mas não o que faço", ouvi de professores. O sol castiga e nossos seres são duais. O político acordou e pensou em fazer bem ao país e ao mundo, mas rendeu-se aos primeiros contatos com seus pares de partido. O juiz sonhou e acordou com a justiça, mas proferiu uma sentença que nem a ele convenceu. O padre vive imerso em suas divinas contradições. O mendigo disse que não bebia e precisava comer, mas foi diretamente à pinga.
O médico é o monstro e o monstro é o médico. Stevenson traduziu o fenômeno humano em sua mais bela ficção, a sua, as nossas ambiguidades.
* Amadeu Roberto Garrido de Paula é advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.
Esse texto está livre para publicação.
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