O Tempo
LITERATURA
Fundação Casa Rui Barbosa libera acesso a documentos do escritor com anotações sobre homossexualidade
PUBLICADO EM 10/04/17 - 03h00
SÃO PAULO. Foi a luz de um círio – como diz o título de um de seus livros – que se apagou na noite de 13 de maio de 1984 debaixo do oitizeiro. Pedro Nava foi encontrado morto, aos 80 anos, próximo a sua casa, no Rio. O autor tinha um revólver calibre 32 e os dedos sujos de sangue e pólvora. Pouco antes, recebera um telefonema misterioso.
Aos amigos, parecia inexplicável que o grande nome do memorialismo brasileiro pusesse um ponto final na própria vida. Na véspera, Nava participara feliz de um “sabadoyle”, famoso encontro na casa do bibliófilo Plínio Doyle. Tinha planos para os dias seguintes.
Os repórteres foram a campo, e uma suspeita grave surgiu – Nava estava sendo chantageado por um garoto de programa –, mas não chegou aos jornais. Em “proteção” à honra do autor, amigos dispararam uma operação abafa. Colou.
Mais de 30 anos depois de sua morte, as anotações que o escritor fez sobre homossexualidade se tornam públicas – elas integram um conjunto, antes secreto, de documentos de seu acervo, guardado na Fundação Casa de Rui Barbosa.
A instituição resolveu reavaliar o status de sigilo dos papéis depois da celeuma envolvendo a carta de Mário de Andrade, em posse da instituição, que foi mantida em sigilo por 40 anos e revelada em 2015 – ainda que até as camélias no jardim da Casa Rui soubessem que o modernista falava de sua sexualidade nela.
Muitos dos papéis não estão datados. Em um deles, Nava escreveu uma pequena oração: “Senhor, Senhor! Dilacerai a minha carne, mas tende pena dos homossexuais”.
Carta anônima. Prova disso é a carta anônima, com um rosário de ofensas, enviada ao memorialista em 28 de janeiro de 1983: “Se já não estivesse você senil com os seus oitenta e alguns, eu diria que você é um cínico perfeito, um molambo moral, um indecente, um torpe. (...) Já em Belo Horizonte eu ouvia dizer coisas sobre você”.
Essas “coisas”, diz o missivista, eram que Nava gostava de “troca-troca”. Ele termina com uma ameaça: “Vou lhe telefonar uma noite dessas”.
A carta está assinada com as iniciais J.L.M.F. – e a única pista que o autor do documento dá é ter frequentado a faculdade de medicina com Nava na década de 1920, mas “um ano adiantado”.
É possível consultar a lista de formandos na faculdade de medicina da UFMG em 1925, 1926, 1928 e 1929 – os dois anos antes e os dois depois daquele em que Nava se formou, 1927. Não há ninguém com essas iniciais na lista.
Na turma do autor, há um médico chamado José Maria Figueiró – mas, conforme Nava escreve em “Beira-Mar” (Companhia das Letras), Figueiró era seu amigo. E, de acordo com a família do médico, eles continuaram próximos toda a vida.
Um dos documentos mais fortes agora revelados traz um desenho do dorso de um homem musculoso, também sem data. Nava anota ao lado: “Possivelmente impressão guardada desde 1929, no meu quinto ano de (hospital) Pedro II. Fui (...) ver os trabalhos anatômicos no anfiteatro da Santa Luzia”. Então o escritor descreve o cadáver de um homem: “Dentro da solução formolada o cadáver de bruços de um homem musculoso. Seus cabelos flutuavam no líquido, sem gravidade”.
Procurado, Joaquim Nava, sobrinho e herdeiro do autor, diz não se opor à divulgação dos documentos.” Pedro Nava dava asas à sua imaginação. O sujeito que escreveu essa carta (anônima) é um covarde”, diz ele, acrescentando que não vê nos documentos nada que sugira que o tio fosse homossexual.
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