domingo, 11 de setembro de 2016

Luta para ser o melhor ‘rouba’ a felicidade


Não basta ser bom, tem que ser excelente. A “regra” está presente nos discursos que mostram trajetórias de sucesso nas novelas, nas revistas e nas propagandas. É tão falada, que a maioria das pessoas acaba acreditando. Mas essa busca incansável pela excelência pode ser fonte de sofrimento, ansiedade, estresse e até depressão. Foi essa dinâmica que levou os sociólogos italianos Gloria Origgi e Diego Gambetta a levantarem a hipótese de que, talvez, o caminho para a felicidade more, não na excelência, mas na mediocridade. Entenda-se por medíocre, neste caso, a raiz dessa palavra de origem latina: mediano, o que está entre o bom e o mau, entre o grande e o pequeno, sem qualquer caráter pejorativo.

“Às vezes, toda essa retórica sobre eficiência é simplesmente insuportável. Às vezes, as pessoas gostam de poder relaxar”, declarou Gloria em uma entrevista à BBC. Para ela e seu colega Gambetta, não raro essa “economia” nas ações é uma forma de reação à tirania da excelência. Muitas pessoas, segundo eles, conspiram de forma mais ou menos consciente para alcançar o menor resultado possível – enquanto outras se encaixam no perfil naturalmente.

Esse é o princípio do que eles batizaram de “kakonomia”. “Kakos”, em grego, significa “ruim” ou “mau”. Ou seja, eles elaboraram uma “ciência da mediocridade”. A pesquisa foi feita levando em consideração a realidade acadêmica da Itália, mas alguns correspondentes podem ser encontrados por aqui também.

A estudante Luísa Ribeiro, 17, foi “vítima” da kakonomia. Ela, que mora em uma cidade do interior onde o pai tem uma carreira política, se sente sempre muito cobrada. “As pessoas acham que eu tenho a obrigação de ser super ‘certinha’, ir bem na escola, nunca tirar uma nota baixa”, reclama.

Toda essa expectativa sobre ela teve seu preço. Quando terminou o ensino fundamental, ela fez a prova de seleção para cursar o ensino médio em uma escola federal. “Eu havia estudado o ano inteiro, estava preparada. Mas, na hora da prova, fiquei ansiosa, sentia que tinha a obrigação de passar, e isso me atrapalhou muito. Acabei não passando, e me sentia como se tivesse decepcionado todo mundo”, lembra. Ela cursou o primeiro ano do ensino médio em outra escola e repetiu a prova para o instituto federal. Com menos pressão, foi aprovada.

A verdade, porém, é que não existe uma fórmula única que aponte o caminho definitivo da felicidade. Segundo a professora Delba Barros, coordenadora do programa de orientação profissional da UFMG, cada pessoa terá a sua própria “fórmula”, desenvolvida de acordo com seus critérios pessoais.

“Não há nenhum problema se a pessoa quiser terminar o pós-doutorado antes dos 30 anos, desejar morar em uma casa maior, ter um carro mais novo, desde que essa seja uma escolha dela, e que ela não se ache melhor que os outros por conta disso. Para fugir da tirania da excelência, a pessoa precisa ter consciência de que precisa definir parâmetros próprios, metas para a vida e também ter disponibilidade para fazer planejamentos fora da expectativa social, se essa for a sua vontade”, recomenda a psicóloga.

Objetivos. A veterinária Júlia Gomes, 31, busca incansavelmente se qualificar cada vez mais. “Sempre acho pouco o que eu estou fazendo. Sempre procuro me capacitar e agarrar todas as possibilidades de aprendizado para abrir meu leque para um futuro emprego. Almejo fazer concurso para ser professora adjunta em uma universidade pública. Na época dos meus pais, as exigências para isso eram muito menores. Agora, a pressão sobre a nossa geração é enorme”. Bem perto do fim de seu doutorado, ela já é professora substituta na UFMG, mas ainda quer prestar o concurso nessa mesma universidade ou em outra.

De acordo com o psicólogo Gustavo Teixeira, mestre em análise do comportamento, a cobrança pela excelência sempre existiu, mas ficou mais forte nas últimas décadas. “As pessoas estão cada vez com um acesso maior à educação, e o mercado ficou mais exigente e mais selecionista. Isso se junta à idealização que as pessoas têm de como sua vida deve ser, e o sofrimento por conta desse ideal se exacerba”, diz.

Nessa idealização, as redes sociais têm papel central. “As pessoas postam ali seus melhores momentos. As redes sociais vendem a ilusão de que todo mundo está super feliz, é amado, tem relacionamentos maravilhosos, foi muito bem sucedido em suas dietas. Mas, às vezes, nenhuma daquelas fotos corresponde totalmente à realidade daquelas pessoas”, diz. Essa tirania da excelência, para ele, é um sistema cruel, já que só existe um “primeiro lugar” e, obviamente, nem todos irão ocupá-lo. “Se você pensar em uma empresa, só há um CEO, não existem três, quatro. Então, só uma pessoa vai ser CEO de cada vez”, aponta. Mas muita gente fica brigando pelo posto e acaba se frustrando.

MINIENTREVISTA

Delba Barros
Especialista em orientação profissional da UFMG
Podemos dizer que a felicidade está em manter-se na média?

Talvez o que possa fazer mais sentido não é a pessoa ficar se esforçando para fazer a média, mas aquilo que, para ela, é o ideal e o possível. Existe um autor da área de carreiras que se chama Edgar Schein. Ele tem um inventário das âncoras de carreira que uma pessoa pode ter. Uma das que mais se destacam no brasileiro é o equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional. Eu não diria que a pessoa está diminuindo a marcha ao fazer isso, simplesmente está investindo na possibilidade de fazer algo que combina esses dois aspectos da vida.

A tirania da excelência sempre traz angústia?

É interessante se perguntar quem é que estabelece essa excelência. Se quem estabelecer isso for o próprio indivíduo, esse é um modo de ser no mundo. Há pessoas que estabelecem para si mesmas critérios muito altos e vivem bem assim. Há uma ressalva muito importante para fazer para qualquer indivíduo, que é: o critério de sucesso deve ser sempre interno, estabelecido pela própria pessoa.

Apesar de ideal, isso é mais raro de acontecer, não é?

Sim. Atendo jovens buscando ajuda para estruturar suas carreiras, e muito do meu trabalho é ajudar a construir esses critérios. Não temos esse hábito de pensar nisso, e, quando a pessoa escolhe padrões que não estão na direção que a sociedade exposta nas revistas, nas novelas, nas propagandas impõe, ela tem a sensação de que não será bem- sucedida.

Tomar uma decisão diferente do padrão estabelecido não é uma escolha fácil. 

Não é fácil! Tem a ver também com a maturidade de ter a clareza de onde se quer chegar. Além disso, tem a ver também com a disponibilidade para rever seu percurso e as suas metas. Nem todo mundo precisa fazer mestrado e doutorado, por exemplo. Aliás, nem todo mundo precisa fazer faculdade. Tem gente que estaria muito bem criando os filhos. Então, a pessoa tem que ter disponibilidade para fazer esses planos que estão fora do que diz a sociedade.

Como conciliar essas metas pessoais com o mercado de trabalho? 

Eu acredito que o mercado é um deus muito caprichoso, que muda muito rapidamente de vontade. Se você se esforçar para sempre atingir o ideal do mercado de trabalho, não vai conseguir, porque quando estiver chegando lá, o mercado muda suas exigências. O que nós temos que fazer é ler as exigências do mercado com óculos mais críticos, fazer as escolhas dentro da realidade de nossas possibilidades. Senão, você não vai se colocar de uma forma autêntica e saudável para si mesmo.

DEPOIMENTO

‘Foi a 1ª vez que alguém me disse que eu não precisava ser a melhor’

A estudante universitária Juliana Queiroz, 20, ainda está no início de seu percurso profissional, mas já percebeu que a pressão para fazer sempre mais e melhor é grande, tanto no meio acadêmico quanto no mercado de trabalho.

“Estou trabalhando em um laboratório em que é explícito o quanto as pessoas tentam mostrar cada vez mais trabalho para ganhar a atenção do orientador e, talvez, ganhar uma bolsa. Isso acaba virando uma competição em um ambiente onde as pessoas deveriam estar se ajudando e compartilhando conhecimentos”, conta ela, que está no 6º período do curso de engenharia mecânica na UFMG.

Ela, porém, começou a sentir as pressões sociais para estar entre os melhores bem antes disso, ainda na escola. “O que eles colocavam na nossa cabeça era que não devíamos sair de casa e nos divertir, só estudar. Hoje, vejo que me esforcei e me estressei muito mais do que precisaria para entrar na universidade. Meu terceiro ano foi muito sofrido, por sentir essa pressão de ter que entrar em uma faculdade, de ter que passar na melhor universidade”, conta.

Depois de aprovada, a pressão não cedeu: além de se sentir sempre obrigada a tirar as melhores notas para conseguir os melhores empregos no futuro, ela ainda se sentia na obrigação de se formar no menor tempo possível.

Tantas obrigações podem ter feito bem para o currículo de Juliana, mas certamente não fizeram bem para sua saúde. Com os níveis de estresse altíssimo, ela precisou buscar ajuda de um psicólogo para aprender a lidar melhor com essas questões.

“Foi a primeira vez que alguém me falou que eu não precisava ser a melhor em tudo”, diz. O apoio da família em não cobrar essa excelência, segundo ela, também foi fundamental. Hoje, Juliana decidiu atrasar um pouco sua formatura, mas levar os estudos em um ritmo que a faz mais feliz.

VIRADA DE MESA

Executivo de sucesso abandona multinacional e cria site de notícias boas, após passar cinco dias na UTI

Em 2012, o empresário Marcelo Martins, 39, tinha a vida dos sonhos de muitas pessoas. Ele era diretor para a América Latina de uma multinacional de cosméticos e perfumes, ganhava um excelente salário, coordenava pessoas e estava sempre envolvido com projetos grandes e importantes.


“Nunca fiz grandes planos para a minha vida, nem no pessoal, nem no profissional. A gente vai sendo condicionado e vai aprendendo quais trajetórias deve seguir para chegar ao ‘caminho do sucesso’, como se ele fosse uma fórmula geral para sermos felizes. Eu tinha em mente que o legal era ter um supercargo, trabalhar em uma grande empresa, ter um grande salário”, conta. Mas, apesar de ter tudo isso, as coisas não iam bem.

Martins se sentia infeliz, e, em 2012, sua vida deu uma reviravolta. “Tive duas tromboses, uma em abril, outra, em outubro. Das duas vezes, tive embolia pulmonar. Na segunda vez, ainda tive uma parada cardíaca, fiquei internado cinco dias na UTI”, conta. Foi aí que ele percebeu que precisava mudar tudo em sua vida.

“Precisei disso para poder acordar e dizer que aquele não era o caminho que eu queria seguir”, conta. Depois de recuperado, ele pediu demissão da empresa onde trabalhava e foi experimentar outras realidades, para ver qual delas lhe faria mais feliz.

“Abri uma padaria artesanal em São Paulo, mas percebi que aquela também não era muito a minha onda. Hoje sou sócio-diretor de um site especializado em dar notícias boas, o Razões Para Acreditar. Acho que me encontrei no Razões. É algo em que acredito muito, que tem um propósito muito bacana, que traz um impacto consciente e importante na vida das pessoas”, conta ele.

Apesar de não ter se identificado com a vida de executivo de uma grande empresa, Martins não vê problema nesse estilo de vida. “Tem gente que se realiza e é feliz sendo CEO. Não tem problema nenhum no fato de a pessoa precisar do carrão e da mansão para ser feliz. A minha história não quer dizer que outras pessoas não possam ser muito felizes nesse caminho. Tudo está certo”, opina ele, colocando uma condição: que a pessoa esteja realmente feliz.

Para ele, o que importa mesmo é as pessoas ganharem consciência de quem são e de qual o seu propósito na vida. “Se você não está feliz, alguma coisa está errada. E isso serve para tudo, não só para sua profissão: vale para suas relações, para as amizades, todas as escolhas”, diz.
O tempo

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