domingo, 1 de dezembro de 2019

Direito e a crise em que nos afogamos


É de trivial conhecimento que a Constituição suprema de um país traça as normas jurídicas que estruturam seus ideais.


Elaboradas, em princípio, por um poder nacional constituinte, em momentos históricos decisivos, de composição das contradições e dos antagonismos, tal poder é um cadinho de vozes discrepantes. É a suprema manifestação dialógica que devemos seguir num mundo civilizado. Toma o lugar da dialética das lâminas dos combates físicos. 


Para conciliar as frondosas opções de homens de livre arbítrio e de posições opostas, os princípios, garantias e regras das Constituições necessariamente medram no campo das generalidades dos consensos. Concordamos, em princípio, mas fiquemos sem os detalhes, pois, do contrário, não conseguiremos criar regras estruturantes. Encalharemos nos desvios e nos atalhos e não daremos conta das funções magnas inerentes a esse poder revolucionário do direito.


Compete às Supremas Cortes dos países, como nosso Supremo Tribunal Federal - STF, guardar essas balizas fundantes e fundamentais. As leis e os atos administrativos, em sua múltipla variedade, não podem desgarrar-se de seus rumos, sob pena de não serem eficazes - são inconstitucionais.


O dilema do intérprete exsurge ao observar determinada matéria jurídica.

Estaria ela plantada no superior campo constitucional, ou no terreno ordinário, que o viabiliza e lhe dá vida. São instrumentos do ideal ou o próprio ideal?


Essa reflexão instiga as análises do STF. Determinado fenômeno do direito é constitucional ou infraconstitucional? Está no diploma maior ou abaixo dele? Muitas decisões de nossa Suprema Corte têm como eixo cognitivo essa definição, que cabe à inteligência do Pretório.


Tácito, senador romano, autor de "anais" e "história", primava pela concisão.

Está é mais desafiadora do intelecto que a prolixidade. Talvez por isso falasse de Jesus, depois de um século da crucificação, pois Jesus escreveu apenas algumas palavras na areia, logo tocada pelo vento. Tácito ficou célebre com seu anátema, "corruptissima republica, plurimae legis". A profusão de leis escritas é um mal. Por seus desvãos fogem os predadores. Sem crítica (ou autocrítica) aos homens de letras, podemos dizer que os grandes homens só verbalizaram, e pouco, a ponto de suas lições ficarem gravadas na memória da humanidade.


Sócrates, Pitágoras, Buda, nada escreveram. E deram caminhos. Alexandre da Macedônia não descartava sua Ilíada, mas dormia com uma espada em baixo do travesseiro, ao lado do livro. Dizia-se na antiguidade - e até hoje - que o livro do começo da estrada só provem do Espírito. O Corão não foi escrito por Deus, foi parte de sua essência, como a bondade e a onipresença.


No dia em que nossas Constituições não passarem de algumas poucas palavras rabiscadas na areia dos ventos talvez sejamos felizes. Mas, por ora - voltemos à vida - cumpre dizer o que é uma coisa ou outra.


Vamos a um conhecido problema.  Nossa lei maior - como outras - enuncia que a lei nova deve respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Indaga-se: os elementos orgânicos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada são matéria constitucional? Analisar se uma cláusula foi cumprida para adquirir-se o direito; se decorreu o tempo necessário para aperfeiçoar o direito adquirido; se os efeitos da coisa julgada englobaram duas ou três pessoas, está na alta esfera constitucional? 


Evidentemente não. O espírito se dirigiu ao legislador ordinário, o representante do povo.  A lei não pode ser retroativa, ei-nos plantados no denominado direito intertemporal. Não façam leis que gerem instabilidade ao povo, porque este precisa viver em paz. Assim, somente se uma lei - ditatorial, ilegítima - disser que ela se aplica sem respeitar aqueles valores, trata-se de matéria constitucional. Diga-se o mesmo de um ato administrativo - um decreto ditatorial.


Tal como nos citados exemplos, as condições, veja-se,  utilizando-se do mais derradeiro, último e excepcional recurso,  a ação rescisória, que desconstitui a coisa julgada.  Deve ser demonstrado pelo autor que o prazo de dois anos, de decadência do direito, não decorreu.  Operação no campo infraconstitucional - das leis ordinárias. Demonstrar que o "dies a quo", a partir do qual descabe qualquer outro recurso - início do fluxo decadência - nada tem a ver com a Constituição.  É   o homem e seus dilemas neste mundo de Deus, não o espírito e a racionalidade abstrata.


Não tem o tema dimensão constitucional, como disse em contrário um acórdão - isolado  - do Supremo. Pertence à orquestra, não à luz que inspira a sonata que a movimenta. A imensa maioria do STF assim o diz, contrariamente àquele solitário e pretensioso produto do imaginário, mas é preciso definir de vez. Essa é a dificuldade do Supremo. Muitos são os guardiões, por meio dos quais passam os assaltantes. Por isso o povo não consegue compreender o direito. A imensa tarefa de nossos dias, em que estamos metidos numa crise que não somente é política, religiosa, ética, educacional,  é afastar a crise jurídica, que também nos esbordoa, estremecimento imprevisto em nossas passadas eras, senão de ouro, pelo menos de platina. No sentido de procurar, para comunhão com as percepções do povo, a melhor, a mais simples forma de comunicação, sem descartar insuperáveis imposições de uma arte ou de uma ciência; que corresponde ao avançado território que buscamos desde os primórdios, a civilização do direito.

Amadeu Roberto Garrido de Paula é advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.

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