sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A prova plena e a asserção nas liminares

Amadeu Garrido de Paula

Nosso anterior Código de Processo Civil, de 1973, subproduto de regime de exceção, revelava sua filosofia autoritária em vários de seus subsistemas normativos, dos quais é exemplo o quadro das medidas liminares.

Para concessão de qualquer medida acauteladora, o Código Buzaid exigia, à comprovação do "periculum in mora", prova o quanto mais plena possível. Daí sua concessão com mão avara pelos juízes, preocupados em adiantar o direito sem que depois ele fosse confirmado na sentença final exauriente.

O novo CPC abriu o espectro da imediata proteção, não fala em certeza do direito, até porque esta somente virá com a sentença final. Contenta-se em falar sobre "probabilidade". Probabilidade  é um "intermezzo" entre a certeza e a incerteza, parelha com a verossimilhança.

Decorre daí, com a vênia dos contrários, que nos parece suficiente, à concessão de uma proteção imediata, a mera invocação do "jus assertiotinis", presunção abstrata, porém lógica. Afastamo-nos, em nosso pensar processual, do magistrado burocrata e incapaz de reflexões do espírito que importam, por vezes, muito mais do que a comprovação, como de hábito, de um fato que possa ser palpado - e não raro fundado em razões comprovadas - e falsas.

Por exemplo, a colisão tangencial de uma motocicleta que voa no espaço, até um muro na margem de uma avenida, provocando sérios gravames físicos em seu condutor, com um veículo estacionado, indevidamente, com parte de sua frente a invadir a contramão, para uma travessia. Melhor do que qualquer prova - principalmente a testemunhal - está no dom concedido por Deus aos homens para raciocinar lógica e criticamente. O impacto de uma moto em baixa velocidade contra um carro parado é incapaz de fazê-la voar; no máximo, deixa-se o condutor nas proximidades do impacto, praticamente sem consequências, muito menos gravíssimas. Ao concluir nesse sentido, o juiz não exacerba seu poder de convicção, antes ajusta a lei jurídica ao auxílio de outra lei, ainda mais incontestável - de pura física dos movimentos e da velocidade.

Outro: alguém se queixa de que um imóvel lindeira passou a produzir ruídos nocivos. E os ruídos são a fonte mais poluidora dentre as poluições quando malbarata o ouvido; é capaz de fazer oscilar o coração da vítima, conforme já reconheceu o E. Pretório, em memorável e acalentado acórdão, em que se pronunciou no sentido de que as lesões auditivas são tão graves (alicerçado em vários pareces periciais), a ponto de não dever ser revertida a aposentadoria por invalidez, no caso de zumbidos crônicos, etc., que são deletérios, a ponto de, em  certos casos graves, o zumbido no interior de um ser poder ser percebido por um terceiro.

Dessarte no segundo exemplo, parece-nos dispensável qualquer prova, bastando confiar-se na asserção do requerente da liminar, que, como é consabido, sujeita-se a sanções graves ao construir uma fábula contra o réu. Da só produção de zumbidos nocivos - uma demolição a perfuradoras e marretadas, por exemplo - extraia-se a verdade. Se o pedido de cautelar é fundado, como se deve, no princípio da razoabilidade, tal como a vedação do som em sua origem por porta e janela antirruído, abafando-o, não a suspensão e tampouco demolição da obra, o deferimento da medida é compatível com as presunções que o direito pós-moderno nos autoriza a  fazer, independentemente da prova, em especial pré-constituída, impossível no caso, muito menos plena.

Se se comprovada a fraude, a medida pode ser revogada a qualquer tempo, posto que seu comando não tem a rigidez irretornável da irreparabilidade. As coisas voltam ao estado anterior, a (s) porta (s) e a (s)  janela (s), antirruído podem ser desfeitas a qualquer tempo ou, como sempre são úteis, custeadas pelo autor e não pelo réu. Desse modo, o direito processual estará trilhando o belo caminho da equidade, esforçando-se por aproximar-se dos direitos humanos, sem a reverência patrimonial do passo, em que a propriedade e a posse eram as ditaduras jurídicas provenientes das ditaduras políticas.

Apenas tocamos de leve no tema, na esperança de que doutrinadores de porte encampem nossa modesta tese, para aproximar o direito contemporâneo do mundo avançado da lógica e da própria filosofia - ciência de todas as ciências.

 Por Amadeu Roberto Garrido de Paula, o advogado paulista atua há mais de 40 anos em defesa de causas relacionadas à Justiça do Trabalho e ao Direito Constitucional, Empresarial e Sindical.

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