segunda-feira, 27 de março de 2023

Em declaração conjunta em evento da ONU, Dom Roque cobra a demarcação das terras indígenas e a superação do marco temporal

 Confira o discurso na íntegra aqui.  

Em declaração conjunta, o presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Arcebispo de Porto Velho, Rondônia, Dom Roque Paloschi alertou ser fundamental que o novo governo retome, imediatamente, a política de demarcação de terras indígenas no Brasil, em Debate Geral sobre situações de Direitos Humanos que requerem a atenção do Conselho. O evento faz parte do 52º período ordinário de sessões do Conselho de Direitos Humanos (CDH 52), que está sendo realizado em Genebra, na Suíça.


O Brasil está vivendo um novo momento político. Houve mudanças nas atitudes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) e a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), porém “mantemos nossa preocupação, porque os povos indígenas no Brasil continuam sofrendo graves ameaças aos seus direitos, às suas vidas e territórios”, alertou o presidente do Cimi.

Na oportunidade, Dom Roque chamou a atenção para o assassinato de lideranças dos povos Pataxó, Guajajara e Kinikinau. Os casos têm em comum os conflitos envolvendo a demarcação das terras indígenas e as lutas pelo reconhecimento do direito originário à Terra.

Em quatro meses, três jovens e uma criança do povo Pataxó foram assassinados em meio aos conflitos pela terra no extremo Sul da Bahia. Em setembro de 2022, Gustavo Pataxó, de 14 anos, foi assassinado durante um ataque de pistoleiros contra a comunidade Vale do Rio Cahy. Em outubro do mesmo ano, o corpo de Carlone Pataxó, 26 anos, foi encontrado sem vida um mês depois de ter desaparecido na Terra Indígena Barra Velha (BA). Em janeiro deste ano, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados por pistoleiros que atuam para fazendeiros da região.

Só no primeiro mês deste ano – entre os dias 9 e 31 de janeiro -,o povo Guajajara, no Maranhão, sofreu cinco ataques que resultaram em três mortes (incluindo um não indígena casado com uma indígena Guajajara) e duas pessoas gravemente feridas. Em 23 de fevereiro, mais dois jovens foram vítimas da violência contra o povo: Jone Canaré Guajajara e outro rapaz – um não indígena que também mora na TI -, foram gravemente feridos por disparos de arma de fogo. Em pouco mais de quinze anos (2003 a 2021), foram registrados 50 assassinatos de indígenas do povo Guajajara no Maranhão, conforme dados  da plataforma Caci, que mapeia os casos sistematizados pelo relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Cimi.


No Mato Grosso do Sul, Elísio Rosa Veiga do povo Kinikinau, de 34 anos, foi assassinado na frente da mulher e dos filhos com quatro disparos de arma de fogo, todos no tórax, no início deste mês (7/3). A motivação estaria relacionada a disputa de terras dentro do território, o que escancara a urgência na demarcação dos territórios indígenas.  A demora por parte do Estado em demarcar o território Kinikinau condicionou o povo a viver em situação de vulnerabilidade humana, cultural e social, forçados a se dividir em territórios dos povos Kadiweu e Terena e áreas urbanas no estado.

Em situações similares de extrema vulnerabilidade estão os povos Guarani e Kaiowá, também no Mato Grosso do Sul, que “seguem determinados em recuperar seus territórios que lhes foram roubados, enfrentando ameaças de fazendeiros, com o apoio das forças policiais e do governo do estado”, conta Dom Roque.


Segundo as lideranças Guarani e Kaiowá, as retomadas buscam “acabar com as muitas décadas de dureza, fome, violência, racismo, veneno, intoxicação, confinamento, ameaças e trapaças dos fazendeiros, para poder garantir o que está na Lei maior de 88 [Constituição Federal de 1988], mas que o Brasil não cumpre. Só assim as famílias do tekoha [lugar onde se é], nossos velhinhos, nossas crianças vão encontrar dignidade e vão poder viver em paz’’.

Não diferente, ao Norte do país “o povo Yanomami sofreu, durante estes últimos cinco anos, as consequências dramáticas e fatais do avanço da mineração ilegal e o abandono da política de saúde por parte do Estado”, denunciou o presidente do Cimi.


A crise humanitária causada pela exploração do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami ganhou uma ampla repercussão no início deste ano, dentro e fora do país. No entanto, a situação não foi exposta apenas agora: organizações indígenas e aliados vêm denunciando e documentando sistematicamente o que estava acontecendo há pelo menos cinco anos. “Já morreu muita gente, 577 crianças morreram”, denuncia Davi Kopenawa, liderança do povo Yanomami.

A situação dos povos elencados por Dom Roque ao Conselho demonstra que a demarcação das terras indígenas está intrinsecamente relacionada à proteção dos territórios e à vida dos povos originários no Brasil. Como destacou o religioso na CDH 52, “é fundamental que o novo governo retome, imediatamente, a política de demarcação de terras”.


Segundo relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021, as terras indígenas com pendências administrativas no Brasil, em alguma fase do processo demarcatório, somam um total de 871. Destas, 598 estão sem nenhum tipo de providências; 143 a identificar, 44 foram identificadas, 73 estão declaradas, 5 com portaria de restrição, e 8 homologadas.

A demarcação das terras indígenas tem sido uma pauta histórica dos povos no Brasil e um compromisso assumido publicamente pelo atual governo. No entanto, “a demarcação efetiva das terras passa pela superação, definitiva, da falsa tese do marco temporal por parte da Suprema Corte brasileira e também do novo governo”, assegura Dom Roque.

Marco Temporal

O marco temporal é uma tese que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Defendida pelo agronegócio e demais setores interessados na exploração dos territórios indígenas, nessa interpretação, os povos originários só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.

É uma tese perversa, que legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos historicamente, pois ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Também inconstitucional, porque “não existe marco temporal na Constituição de 88, existe uma ficção jurídica criada justamente para impedir a reparação de um direito dos indígenas”, afirma o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto.

Em contraponto está a “teoria do indigenato” – defendida pelos povos indígenas, organizações indigenistas e de apoio à causa indígena – que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário, ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Atualmente, essas duas teses encontram-se em disputa no Supremo Tribunal de Federal (STF), no julgamento com repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. A decisão tomada neste julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil.

O julgamento que discute o fim do marco temporal já teve início, mas foi interrompido por pedido de vista e segue sem data para retornar à pauta da Corte. No entanto, nesta terça-feira (21) em visita ao Vale do Javari (AM), a ministra Rosa Weber, presidenta do STF, afirmou que irá pautar ainda no primeiro semestre deste ano o processo.

Os povos originários e apoiadores da causa indígena têm cobrado a retomada do julgamento e reconhecimento do direito mais fundamental aos povos indígenas, que é o direito à terra. Pedido que Dom Roque Paloschi também levou ao Organismo das Nações Unidas: “solicitamos a este Conselho que mantenha uma atitude vigilante para que o Estado brasileiro avance concretamente na garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas”, finaliza o presidente do Cimi.


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