segunda-feira, 25 de junho de 2018

O pequeno córrego do centro

*Amadeu Garrido de Paula

Nasci na fronteira antípoda, impercebida,
entre o cimento e os postos de gasolina
e as árvores, o capim cheiroso e os pardais;
um passo atrás envolvia-me na natureza
outro me aproximava do concreto civilizado.
O verde era o símbolo mágico da liberdade
da inexistência de limites para os garotos;
os paralelepípedos só lembravam a cor do aço
sons de poucos carros experimentais e os pneus
que rodavam, poucos, barulhentos para o futuro.
Nos matagais, não eram florestas, aspergia
um cheiro da manhã, outro parecido, da noite
e o vento, esse bulia com os ramos, via-se vida
morria adiante, no cemitério das casas geminadas.
Raramente enfurnavam-me na casa do abuelito
bravo andaluz que veio a estas esperanças
e se recolhera longe da fronteira, civilizado, 
na rua principal, das pedras e das casas acopladas.
Minha ansiedade era absoluta, entre as paredes,
de modo que, nos descuidos, escapava, e debruçava
sobre uma velha ponte que destoava na calçada
e dela via o córrego, única lembrança da fronteira
por muito tempo, suas águas rasas, sutilmente,
desviando-se das pedras, redemoinhos, e seguiam
estreito, rala vegetação nas margens, mas a vida
retornava naquele cemitério de vivos de gravata
naquela mata de ferro, cimento, tintas e ilusões.
Debruçado sobre o velho e discreto pontilhão
era possível cogitar sobre o destino do riacho
único reação insólita no velho centro à opressão.
Muitos tempos e poucos se deram conta dele.
Para onde iria? A desaguar no único rio da terra
desobediente, não atraído pelo mar, pelo sertão.
Muitas décadas depois, ao voltar aos primevos,
também sozinho, o sentimento o exige, na solidão,
encontrei o mesmo córrego despretensioso
a desafiar silente o velho centro concretizado.
Corria ou tentava fazê-lo, como há meio século,
Assim como eu voltava à felicidade no crepúsculo.
Nada mudara no drama, desculpe-me Heráclito, 
mas muitos córregos e muitos homens sempre
iguais, parecem traduzir a paz da eternidade.

Amadeu Garrido de Paulaé Advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.

Esse texto está livre para publicação

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