sexta-feira, 28 de abril de 2017

A história como garantia

Atual Secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, João Batista de Andrade, 77, foi indicado no mês passado para ser o próximo diretor-presidente da Ancine, com a saída de Manoel Rangel. Ainda assim, ele admite que relutou contra o convite para os dois cargos – devido às tensões entre a classe cinematográfica e o atual governo. Aguardando sua sabatina no Senado, ainda sem data, o mineiro de Ituiutaba – diretor de filmes como “A Próxima Vítima” e “O Homem que Virou Suco” – revelou ao Magazine por que aceitou a proposta, como pretende mediar o diálogo entre cineastas e governo e os principais desafios que o aguardam no novo mandato.
Como e por que você foi parar no cinema?
Fui para São Paulo fazer vestibular de engenharia e logo passei na Politécnica. E, quando cheguei lá, foi um mergulho num outro mundo que eu desconhecia. Fiquei muito encantando com contatos que tive na área de literatura, cinema e teatro. Foi um mergulho numa piscina cultural. Comecei a fazer parte de um grupo que produzia um jornal literário. Depois de três anos, formamos um grupo de cinema, o Kuatro. E eu frequentava muito o Teatro de Arena e o Teatro Oficina, em São Paulo. Mas o cinema foi uma paixão avassaladora. Tínhamos um cineclube, uma câmera 16 mm, começamos a filmar e fui mergulhando cada vez mais. Mas outra coisa que também descobri quando entrei na universidade foi a política. No terceiro ano, já estava militando pelo PCB. Fui dirigente estudantil da UNE em 1963, me joguei na política e no cinema. E, com essas duas devoções, a engenharia foi ficando para trás. Isso definiu minha vida, para onde eu iria.
De que forma?
Quando houve o golpe, em 1964, eu estava no quinto ano de engenharia. E já era muito conhecido como militante, falava em nome do partido. Três dias depois, cheguei à Casa do Politécnico e encontrei meus amigos com uma malinha falando “vai embora, vai embora”, porque tinha passado gente ali me procurando. Fui para a rua, não tinha para onde ir, mas não fui para o exílio. Um amigo meu de infância me achou, me levou para o apartamento dele, e fiquei lá seis meses. Foi quando me perguntei: de tudo que eu gostava, o que me daria uma profissão? Entre literatura e cinema, optei pelo cinema e passei a me dedicar. Fui trabalhar na Cinemateca Brasileira, programando filmes no final de 1965. A partir daí, minha carreira foi deslanchando.
Qual é a principal diferença entre o cinema brasileiro de hoje e de quando você começou?
É tudo diferente. Tecnicamente, é diferente. A visão das pessoas. Gerações diferentes. É uma geração hoje que, de certa forma, nasceu quando a gente era cineasta. Viram, meninos ainda, a nossa produção nos anos 70, o esforço na época da Embrafilme. Era um cinema marcado pela política e por uma afirmação nacional, muito ligado ao social e à renovação dos novos cinemas internacionais. Hoje, as gerações enfrentam outras pressões. A própria democracia brasileira tem colocado novas pressões aos cineastas. Os filmes estão muito diferentes. A questão da afirmação da cultura brasileira, da identidade latina e brasileira, foi superada. Mas, em compensação, a diversidade do cinema brasileiro é espantosa, muito maior que nos tempos áureos da minha produção.
Você está prestes a assumir a Ancine num momento de bastante tensão entre a classe audiovisual e o governo. Como pretende mediar esse diálogo?
Os cineastas são cidadãos e têm o direito de se manifestar. Isso não tem questionamento, eu mesmo sempre militei, vivi uma ditadura. A última coisa que vou fazer é criticar manifestações de realizadores. Mas acho que tem que ter uma abertura do próprio cinema. Eu custei a aceitar o convite para a Secretaria e agora essa indicação para a Ancine por causa dessas coisas. Mas acho que os cineastas não têm por que se colocarem contra mim. Estou colocando minha história como garantia de que tudo que vou fazer vai se dar com vistas ao interesse do cinema brasileiro. Vamos fazer políticas sem perder um centavo, uma unha, do que foi conquistado. Pelo contrário, vamos melhorar tudo que puder. Eles precisam saber que isso se trata de uma política de Estado. Não é porque você gosta mais ou menos de um governo que ela vai mudar. Fui de um grupo que fez o cinema brasileiro crescer nos anos 70 em plena ditadura. E produzimos filmes excelentes, críticos. Podia até ter censura, mas os filmes eram produzidos. Mas é normal que haja embate. Isso é expressão da liberdade das pessoas. Sinto que há uma tranquilidade com minha presença. O cinema brasileiro sempre foi minha paixão. Relutei em aceitar, mas senti que podia fazer algo bom agora. Democratizar a política cinematográfica. Estou certo de que isso não será problema nenhum.
E como você pretende lidar com a ação das teles que está questionando a Condecine no STF?
É direito das teles entrar com a ação. Mas mantenho contato frequente com a Advocacia Geral da União e com os consultores jurídicos do ministério, e a indicação de todos eles é muito favorável ao governo, à Ancine e ao cinema. E que as teles muito dificilmente podem ter esperança de ganhar essa briga. Houve uma liminar de um juiz de Brasília, que foi derrubada no STF por um parecer do Lewandowski, que já aponta as razões para uma decisão bastante favorável à lei. Mesmo que um juiz dê ganho de causa para eles, vamos para o Supremo. Vou deixar correr, sem medo.
Com relação à regulação de plataformas digitais, como a Netflix, qual a sua opinião?
É uma pergunta que a gente pode fazer no mundo inteiro. Não há ainda um lugar no globo que tenha encontrado a fórmula para resolver isso. A questão é: se você exibe filme no Brasil, tem que pagar. Estão usando o mercado. Como regular isso, ninguém ainda sabe. A questão está em pauta no Conselho Superior de Cinema. Já coloquei para nossa próxima reunião, dia 16 de maio. A Ancine fez uma consulta pública e foi atrás de informações de outros países para que o Conselho tenha dados para avaliar. Não podemos ter pressa porque é muito complexo.


JOÃO BATISTA DE ANDRADE


“É um cinema que está procurando por seu país”


O que você vai trazer da sua experiência na Secretaria do Audiovisual e que mudanças planeja?
O Fundo Setorial do Audiovisual é o coração do cinema brasileiro. E vai continuar a ser utilizado da melhor maneira possível. Quero trabalhar mais as políticas de regionalização do audiovisual nacional, que têm funcionado muito. Quero ampliar isso. Quero reuniões periódicas com representantes das políticas regionais. E o primeiro que vou chamar é de Minas Gerais, porque fiquei muito feliz com o recente crescimento da atividade cinematográfica aqui. E uma política democrática depende muito da mobilização das pessoas. Nesse sentido, tenho necessidade de que o próprio setor se organize e se manifeste para que eu tenha a força de defender as propostas junto aos outros diretores e ao Comitê Gestor do FSA.
E como resolver o gargalo da distribuição e da exibição?
Tem mercado para tudo. O que tem acontecido é um problema na área da distribuição, uma concentração muito grande, basicamente, em uma distribuidora só – que é excelente, mas é preciso que surjam outras. Nos anos 1970, tínhamos uma cota de tela, e a própria produção do cinema brasileiro foi empurrando essa cota para cima. Começamos a superá-la, ocupar até 140 dias por ano com quase metade dos filmes produzidos atualmente. Hoje, com muito mais produção e dinheiro, a ocupação caiu muito. O que acontece com o cinema brasileiro é que ele continua não sendo prioridade para o exibidor. Os filmes nacionais são tirados de cartaz porque o exibidor tem que atender o blockbuster norte-americano. Conversei recentemente com o representante da MPAA (Motion Pictures Association of America), e ele me falou que eles têm 90% de ocupação na América Latina hoje. Como exibir filmes brasileiros nessa situação de domínio muito grande e abusiva? Outra coisa é que você tem uma meia dúzia de filmes que fazem 2 milhões ou 3 milhões de espectadores. E o resto está lá no chão, não tem intermediário. Não tem distribuidora para trabalhar esses filmes. Precisamos pensar bastante nessa questão e abrir janelas que não necessariamente salas de cinema, como o vídeo on demand, a TV a cabo, as teles, o YouTube. Fazer com que essas novidades se transformem em mercado para o cinema brasileiro. Encontrar formas de trabalhar todos os filmes produzidos. Não pode trabalhar só o que aparentemente vai dar certo. O cinema norte-americano trabalha com uma gama de filmes sem saber o que vai estourar. Precisamos dar uma chance às produções para que o mercado escolha.
Você tem tempo de ir ao cinema? O que gostou da produção nacional recentemente?
Tenho ido bem menos do que gostaria. Mas gosto da grande diversidade. É um cinema que está procurando seu país – o mesmo que está acontecendo com a sociedade brasileira. Estamos descobrindo que país é esse nosso. É um cinema muito criativo, com muitos filmes tocantes sobre aspectos da vida nacional, questões sociais. O Brasil está presente na produção, mas é um cinema muito bem-realizado que está buscando seu caminho. Não é o cinema da minha geração. É uma geração que está procurando o caminho para um cinema brasileiro mais universal. Tenho uma curiosidade enorme por essa nova leva cinematográfica.

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