segunda-feira, 23 de maio de 2016

‘Solução para o sistema alfandegário é inevitável’

O Tempo

PUBLICADO EM 22/05/16 - 03h00

AUSTRÁLIA COMO EXEMPLO

A solução passa pela criação de uma autorização especial para importação de produtos de pesquisa científica


Com passagem pela Austrália, o cientista brasileiro Gustavo de Alencastro, que atualmente faz pesquisas na área de terapia gênica na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, não tem dúvidas de que o dia a dia nesses laboratórios o fez perceber o quão mais fácil e eficiente é fazer pesquisa fora do Brasil.

“Durante meu mestrado na Universidade de São Paulo (USP), tínhamos que planejar experimentos com três meses de antecedência, pois era desse tempo que precisávamos para que nossos reagentes chegassem do exterior. Isso atrasou muito alguns dos projetos”, lembra.

Com uma condição similar à do Brasil, na Austrália, Alencastro também se recorda de ter que importar muitos materiais, mas em circunstâncias bem mais favoráveis. “Mesmo estando mais distante dos EUA que o Brasil, os produtos chegavam com extrema rapidez à Austrália. Existe, sim, uma taxa de importação de uns 20% sobre o preço do produto em dólar americano, mas nem se compara aos altos impostos que pagamos no Brasil”, reforça.

Para o pesquisador, a solução para o atrasado sistema brasileiro passa pela criação de uma autorização especial para importação de produtos de pesquisa científica, entre outras medidas.“Seria necessário criar uma seção especial em nosso sistema alfandegário, em que os produtos de pesquisa pudessem ser liberados rapidamente para os laboratórios e que possibilitasse reduzir os impostos sobre esses materiais. Desse modo, teríamos produtos de pesquisa rapidamente em nossas mãos com preço justo e com ótima qualidade e eficiência, pois não ficariam parados por meses até serem entregues ao pesquisador. Além disso, temos um sistema falido de concursos públicos tendenciosos que causam um impacto muito importante no desenvolvimento científico do Brasil”, afirma. (LM)

Financiamentos dependem de boa situação econômica no Brasil

Em seu laboratório na Escola de Saúde Pública Johns Hopkins, nos Estados Unidos, o professor brasileiro Marcelo Jacobs-Lorena desenvolveu um mosquito transgênico imune ao parasita causador da malária – doença parasitária que mais mata no mundo. “Aqui os funcionários são terceirizados e contratados; então, se ele não se esforçar, não produzir, ele pode ser mandado embora, pois as pesquisas têm prazos. A continuação e as chances de renovação dos projetos dependem disso”, destaca. Por isso, Marcelo Jacobs-Lorena acredita que, se tivesse que fazer os mesmos estudos no Brasil e lidar com aspectos contábeis e administrativos, não teria o mesmo rendimento.

O professor também destaca as diferenças entre os sistemas de seleção para financiamentos de pesquisa. “Nos EUA, temos ciclos contínuos. Se a gente tem um projeto que, ao ser submetido, for julgado bom, ele vai ser aceito. No Brasil, depende de chamadas com assuntos específicos. Se o laboratório não se encaixa, não tem possibilidade de ser financiado. Também tem o problema que chamo de “gangorra”: quando o Brasil está em boa situação financeira, é fácil conseguir financiamento, mas em situações como agora, com pouco dinheiro, fica difícil até ter as chamadas”, afirma. (LM)

Minientrevista

Miguel Nicolelis, médico e cientista brasileiro, professor de neurociências na Univ. de Duke (EUA)

O senhor precisou sair do Brasil para desenvolver suas pesquisas. O que, em sua opinião, falta para o desenvolvimento da pesquisa científica no Brasil?

Saí do Brasil há 30 anos. Quando você falava que era cientista brasileiro, ninguém acreditava, nem aqui, nem fora. O Brasil daquele momento era muito diferente do país de hoje. Nós demos grandes saltos quantitativos e qualitativos. Hoje em dia, pelo menos até antes dos últimos meses, quando a crise ficou mais séria, os jovens brasileiros tinham muito mais oportunidade e chance de fazer ciência do que eu tive quando terminei a faculdade de medicina na Universidade de São Paulo (USP).

O senhor acredita que a burocracia muitas vezes paralisa a ciência no Brasil?

A burocracia é um grande drama, porque nós ainda não temos essa cultura de priorizar a ciência. Hoje em dia, no Brasil, todos os passos, desde quando o cientista recebe um financiamento, a primeira coisa que acontece é o pessoal cobrar a prestação de contas. A ênfase não pode ser essa. Deve ser o que você vai fazer, como vai fazer, e dar aos cientistas condições de pensar e criar. De certa maneira, a ciência tem um quê de arte, e isso ainda é muito difícil, porque ela é regida por normas extremamente rígidas e burocráticas e que deixam maluco o cientista que trabalha numa universidade federal. Ele tem que se desdobrar em cinco empregos e ao mesmo tempo ser cientista, administrador, professor, empreendedor, e ainda responder a outras tarefas de extensão.

O senhor se lembra de algum episódio específico em que a burocracia atrapalhou suas pesquisas? 

Dava para escrever um livro só sobre minhas histórias. Mas eu me lembro de um projeto que eu ganhei em 1988, logo depois que eu terminei o doutorado, e fiquei todo feliz. Demorou tanto que, quando eu saí do Brasil, ele não tinha sido liberado ainda. Depois que eu voltei, encontrei o presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e cobrei por estarem me devendo isso ainda. Mas se perdeu no tempo. Na época, eu tinha 27 anos e foi o primeiro projeto que consegui e nunca recebi. Quando eu estava no Brasil, nos anos 80, o problema não era só conseguir ganhar o projeto, ele tinha que sair.

Como mudar esse cenário, especialmente em um momento de crise?

É como em nossa casa. Tem certas coisas que, mesmo quando você está em crise, você não elimina: não deixa de comer e não deixa de pagar algumas contas que são vitais. Educação, saúde, ciência e tecnologia para o Orçamento de um país são vitais. Evidentemente a crise econômica não é só no Brasil. Vou frequentemente à Europa, e colegas da França, da Inglaterra e até da Alemanha dizem que os laboratórios estão sofrendo. Até nos Estados Unidos existe uma contenção de verbas. Mas um país que estava evoluindo em um ritmo muito bom cientificamente nos últimos 12 anos não pode abdicar dessa curva de crescimento, pois, uma vez que você deixa de investir em ciência, leva muitos anos para recuperar essa curva. Após a inércia fica muito difícil.

Em sua opinião, em que setor o Brasil mais fica atrás em comparação com os países?

A cultura científica no Brasil é muito pobre ainda. Ela é pouco difundida, então as pessoas acham que, se você faz um experimento na sexta-feira, na segunda-feira seguinte já está publicado, e não é verdade. Para fazer estudos de alto nível, com repercussão mundial, é um processo longo. Além disso, acho que há falta de amor ao Brasil. As pessoas estão perdendo vínculo com a marca e com o Estado Brasil. Essa é a minha maior preocupação nesse momento. Só porque o mundo está numa crise econômica não é o fim do mundo. O talento brasileiro é enorme. A gente não pode simplesmente desistir do país. (LM)
O Tempo

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