quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

'Café com Canela' abre a Mostra de Tiradentes

Conscientemente ou não, curadores e programadores constroem narrativas em seus festivais. Exibir um filme depois de outro cria inevitáveis relações de causalidade e significação que afetam como o público recebe cada obra. E isso ficou claro no último Festival de Brasília, onde “Café com Canela” – que abre a Mostra de Tiradentes nesta sexta à noite – fez sua estreia nacional.
A produção do Recôncavo Baiano acabou se tornando uma bem-vinda e afetuosa resposta à polêmica detonada no festival em torno da ausência de subjetividade e da falta de tato no retrato dos escravos em “Vazante”, de Daniela Thomas. Protagonizado por personagens negros complexos, humanos e com uma riquíssima vida interior, “Café” gerou declarações de amor rasgadas, com pessoas falando que esperaram anos por um filme capitaneado por quatro mulheres negras: Glenda Nicácio, que co-dirige ao lado de Ary Rosa, a produtora Thamires Vieira e as atrizes Aline Brunno e Valdinéia Soriano – esta última, vencedora do Candango de melhor atriz.
O mais curioso é que os protagonistas de “Café” são personagens que, em outras produções, seriam estereótipos ou cacos usados como muletas periféricas em narrativas brancas. Há Rosa (Aline Brunno), a negra bondosa que quer ajudar a todos; seu vizinho Ivan (Babu Santana), o gay negro afetado; e Cidão (Arlete Dias), sua prima espevitada de tiradas hilárias. Mas Rosa tem uma vida própria, com um marido amoroso, filhas e um trabalho. Ivan é médico. Cidão não está ali para entreter brancos. E junto com Violeta (Soriano), uma mãe em luto eterno que não sai de casa porque não consegue superar a morte do filho, eles compõem um dos mosaicos mais ricos da diversidade e da experiência negra já vistos no cinema brasileiro.


Não que o filme de Glenda e Ary, mineiros formados em cinema na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, seja uma obra-prima impecável. O longa é claramente resultado de dois diretores de primeira viagem, transitando sem muita sutileza entre vários registros – do melodrama novelesco ao teatral alegórico felliniano, com um quê documental – e experimentando os mais diversos recursos de linguagem, da câmera subjetiva do ponto de vista de um cão a uma divisão de telas para mostrar três vizinhos simultaneamente e ao vai e vem temporal da montagem.
E o filme funciona porque, mesmo quando isso não é exatamente bem feito, os cineastas demonstram uma paixão tão grande pelas ferramentas audiovisuais, e especialmente por seus personagens, que ela contagia o público. Até quando Rosa e Violeta têm uma conversa altamente inverossímil, ou improvável, sobre a magia do cinema, ela acaba triunfando, porque o maior mérito de “Café” é como essas personagens são deliciosas, ricas e gostosas de ver.
“Um filme com um elenco todo negro falando de subjetividade ser tão desnorteante para o público faz a gente pensar qual cinema estamos fazendo e o que estamos representando. Câmera é poder. Não dá para relaxar porque, quando estou com um microfone na minha mão, estou falando por muitas pessoas e quero que elas se sintam representadas”, disparou Glenda Nicácio durante seu debate em Brasília, levando o público presente às lágrimas e sendo aplaudida de pé.
E grande parte desse poder de representação vem da relação de intimidade e autenticidade que o longa mantém com a cidade de Cachoeira, onde foi filmado. “Ela é um elemento da narrativa e da linguagem. O filme é de Cachoeira, para Cachoeira, e a resposta da população à exibição que fizemos lá foi linda”, celebra Ary Rosa. Essa proposta faz de “Café” um primo direto de “Peripatético”, curta dirigido pela jovem negra Jéssica Queiroz na periferia de São Paulo, que também está na competitiva de Brasília. Os dois são filmes feitos pela periferia, na periferia e para a periferia, subvertendo e ignorando padrões estéticos e regras de bom gosto ditados por críticos homens brancos – cinema popular de verdade, e não as produções comerciais que inundam os Multiplex.
Rosa destacou ainda como isso tudo só foi possível graças aos editais de regionalização promovidos pela Ancine e pelo Fundo Setorial nos últimos anos. E num momento em que os fomentos estaduais estão desaparecendo e que os realizadores expressam temor de que as políticas públicas audiovisuais sejam o próximo alvo dos cortes do governo, “Café com Canela” parece o relicário romântico de um projeto de país em extinção. Esse status pode criar expectativas inatingíveis às quais o longa não quer, nem nunca quis, corresponder, mas não se engane: ele tem falhas técnicas e narrativas, mas elas não vão importar se você abrir o coração para seu humor despretensioso, seus personagens irresistíveis e para uma história de negros mostrando como a vida sempre pode prevalecer, mesmo diante das piores mortes.
Programe-se
21ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Quando. De 19 a 28/1
Onde. Tiradentes
Abertura. Nesta sexta, às 21h, no Cine Tenda

Programação completa. mostratiradentes.com.br
O Tempo

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