segunda-feira, 30 de abril de 2018

Um processo doloroso e belo

O que te inspirou a escrever o livro?
Eu queria, há muito tempo, escrever um romance, porque eu sempre brincava: “O meu problema é que escrevo livros que não compraria, pois só compro livros de ficção”. Desde muito cedo, sou leitora de ficção, mas não me achava capaz de escrever um livro desse tipo. Dois anos atrás, tomei coragem e conversei com a editora Planeta. A princípio, eles não se entusiasmaram com a ideia, porque meus livros têm dado muito certo. “A Arte de Ser Leve”, por exemplo, já vendeu quase 100 mil exemplares. É aquela velha história: não se mexe em time que está ganhando. A editora resistiu um pouco, mas acabou me dando sinal verde. Mas quando sentei para escrever, acabei criando um sinal vermelho para mim, não conseguia. Fiquei mais de um ano tentando, tive um bloqueio total, me isolei em um apartamento para escrever. Nessa época, eu estava com uma carta que minha mãe escreveu para mim para que eu lesse depois que ela morresse. Ela também escreveu para os meus irmãos, mas eles não tiveram coragem de ler. Eu tirei um xerox da carta e coloquei ao lado do meu computador enquanto tentava escrever o romance. Liguei para a editora dizendo que eu rescindiria o contrato. Mas aí aconteceu uma cena muito bonita: eu estava nesse apartamento com a carta da minha mãe do lado, porque eu a usaria no romance de alguma forma. Até que pedi à alma dela: “Peça a Deus pra me iluminar, eu tenho que escrever, e não tem nada dentro de mim”. Quando olhei para a carta, pronto! Escreveria cartas para a minha mãe. E, em cinco meses, escrevi um livro que estava há um ano tentando fazer. Escrevi com o coração, da primeira à última personagem. Parte do livro é ficção, mas 70% é real.

E como foi esse processo de escrever sobre sua vida?
Foi extremamente doloroso, eu até emagreci. Escrever um livro sobre a própria história é eficaz, mas muito doloroso. Eu faço terapia há anos e nunca tinha ido tão ao fundo da minha alma como fui nessa escrita; em nenhuma sessão consegui arrancar tantas memórias, tantos sentimentos que estavam esquecidos. Eu falo que é um livro em que não há intenção literária; eu não reescrevia, não refazia o texto, não bordava a linguagem. Quis escrever de uma forma absolutamente real, ditada pelos meus sentimentos, conversando com a minha mãe à minha frente. Essa conversa foi tão forte que, às vezes, eu não sabia mais o que era realidade e o que era ficção. Estava tão vivo para mim que não posso dizer que foi um acerto de contas com o passado, mas um processo de reconstrução doloroso e belo.

No livro, Ana diz que o melhor jeito de se expressar é escrevendo. O que é a escrita para você?
A escrita nos obriga a confrontar o que está dentro da gente. Escrever é mais forte que falar. A escrita tem uma concretude que nem sempre a fala tem. Quando você vê o que escreveu, os sentimentos ganham forma, as memórias ganham forma. É como se trouxesse o mundo interior pra fora. Escrever pode ser libertador, doloroso, mas sempre vale a pena.

Em muitas das personagens é possível sentir o peso do que é ser mulher e o quanto é preciso se esforçar para sair de certos padrões. O livro tem uma temática feminista e feminina?
Feminista, não, mas feminina, sim. Minha mãe é a figura mais forte da minha vida, ela criou seis filhos sozinha, sem se colocar na posição de vítima, sem se amargurar. Ela era de uma inteligência, de uma generosidade e de uma lucidez impressionantes. A mãe dela teria tudo pra ser vítima, pois viveu sofrimentos inqualificáveis, mas também era uma mulher que não se colocava na posição de vítima. Fui muito atraída por essa figura feminina que consegue aliar força ao sofrimento. A própria Ana, que tem tanto de mim, não é uma mulher vítima das circunstâncias, mas tem força que faz com que ela vá em frente.

O livro, por muitas vezes, têm histórias pesadas narradas pela Ana, mas, ao mesmo tempo, há delicadeza nas palavras. Como foi encontrar esse equilíbrio?

Minha mãe conseguia lidar com delicadeza com as coisas mais pesadas da vida. Ela ensinou isso para os seis filhos. Ela nos ensinou o senso de humor, a ter esperança, a não estacionarmos na infelicidade nem na amargura. Ela nos ensinou a ver a vida de forma mais suave por mais que ela pese. Talvez, inconscientemente, eu tenha adotado o olhar da minha mãe. Eu não estava só falando com ela, estava falando como ela.

O livro é construído com cartas escritas por Ana e dirigidas a sua mãe mescladas com uma narração em primeira pessoa. Por que optou por essa estrutura?
Se o livro fosse feito apenas com cartas, ele ficaria cansativo. Mas o motivo principal para isso é que, ao mesmo tempo em que queria conversar com a minha mãe, havia coisas que eu não queria que fossem ditas para ela. Então resolvi fazer essa alternância de janelas, que são colocadas entre colchetes. É como se eu escrevesse para minha mãe e chegasse na janela para falar outras coisas com o leitor.

O México está presente no livro, e o leitor pode ter a sensação de que você, Leila, ama o país. É verdade?
Morei lá por quase quatro anos na década de 70. Me apaixonei perdidamente pelo México. Depois do Brasil, é o país de que mais gosto. Sou apaixonada pela cultura mexicana, voltei lá umas quatro vezes. Também fui para lá fazer um ritual com os curandeiros, para matar a saudade, para matar o espanto. Ele é muito presente na minha vida.

Martha Medeiros anuncia em seu prefácio que a autora nos convida a entrar em um universo particular e íntimo de Ana. Acredita que esse pode ser sentimento dos leitores também?
Como é uma mistura entre realidade e ficção, eu senti muita insegurança na hora de escrever sobre coisas mais pesadas, porque foge de tudo que escrevi até hoje. Sempre entrevistei muita gente para fazer os livros, era impessoal, mas, ao mesmo tempo, pensei: “Ou escrevo com honestidade, ou não escrevo”. Algumas pessoas podem se assustar, mas vão entender que era preciso.

Já está pensando no próximo livro? O que pode adiantar?

Me estressei tanto pelo fato de ter ficado um ano tentando escrever e depois ter de fazê-lo em cinco meses que já falei para as pessoas me amarrarem se eu disser que farei outro livro. Essa gestação foi dolorosa, mas não vou dizer que estou com depressão pós-parto. Mas agora é hora de dar atenção a esse filho, porque a gestação foi cheia de sobressaltos.
O Tempo

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