terça-feira, 17 de abril de 2018

Assassinos de Marielle

O TEMPO
Cristovam Buarque
PUBLICADO EM 06/04/18 - 03h00
Certa lenda árabe diz que uma espécie de coruja invisível sai de dentro das pessoas assassinadas para perseguir seus assassinos até que eles sejam condenados. O Brasil inteiro deseja que essas aves ajudem os investigadores a identificar os bandidos que mataram Marielle e Anderson. Mas precisamos de outra ave que nos dê força para lutar contra os assassinos invisíveis, históricos, que não apertaram o gatilho, mas criaram nefastas condições que levaram ao duplo assassinato.

Há mais de cem anos, latifundiários e governantes brasileiros deram passos na direção do assassinato de Marielle. Ao negarem a reforma agrária para os ex-escravos e escolas para seus filhos, induziram milhões de pobres excluídos à migração em direção ao desemprego, ao desespero, à violência. Fizeram um país ineficiente e injusto, dividido pelo apartheid social que nos caracteriza.

Marielle foi morta por alguns bandidos, mas seus assassinos não cabem em um carro: são os governantes que, ao longo de décadas, se negaram a fazer as reformas que o Brasil precisa: agrária, educacional, urbana, tributária, de gestão do Estado. No lugar das reformas, corromperam prioridades, negando escola de qualidade, água e esgoto, assistência à saúde, apropriando-se do Estado para servir aos privilegiados e, sobretudo, manifestando absoluta insensibilidade diante do sofrimento dos pobres e da fragilidade do país.

A pessoa Marielle foi assassinada com tiros saídos de um carro a seu lado, mas sua personagem histórica estava ali, naquele instante, por sua luta contra os erros seculares das elites dirigentes do Brasil. Seus assassinos diretos construíram suas maldades no mesmo caldeirão das injustiças criadas pelos assassinos históricos que a vítima deles tentava impedir.

Marielle e Anderson foram mortos por sete tiros de pistola e por cinco séculos de injustiças e ineficiências da sociedade brasileira. Esperamos que as investigações descubram quem deu os tiros, que a Justiça os julgue e os condenados sejam punidos, mas isso não basta. Será preciso que cada brasileiro assuma a luta de Marielle contra os assassinos históricos.

Que transformemos o Brasil em uma nação com economia eficiente e uma democracia estável; em uma sociedade que ofereça a mesma oportunidade a cada brasileiro para desenvolver seu talento, graças à garantia de acesso dos pobres às mesmas escolas dos filhos dos ricos.

Que nossas favelas sejam cidades urbanizadas e que sejamos um país sem preconceitos com os novos costumes sociais e culturais, com respeito à diversidade de religiões, raças, orientações sexuais; e radicalmente intolerante com a corrupção política em todos os partidos e ideologias.

Que a polícia e os juízes cuidem dos assassinos e que os cidadãos e eleitores cuidem dos culpados históricos, que, há séculos, matam, empobrecem, violentam o povo brasileiro. Que os assassinos sejam presos e que o Brasil seja reformado.
O Tempo

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