domingo, 4 de fevereiro de 2018

'Escrachos' a políticos em locais públicos viram rotina

Com o avanço da crise política e econômica, que gerou 13 milhões de desempregados no Brasil, aliada ao número de políticos, ministros e grandes empresários envolvidos em escândalos de corrupção, os ânimos dos cidadãos brasileiros estão mais exaltados. Demonstrações de revolta ou intolerância se desdobram nos chamados “escrachos” às autoridades. Cenas de figuras públicas sendo hostilizadas em espaços públicos, como restaurantes, aeroportos e shoppings se tornaram comuns.

Na semana passada, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes foi escrachado por passageiros em um voo comercial. Durante o protesto, os presentes disseram que o ministro “era uma vergonha para o Brasil”, questionaram se Gilmar Mendes defenderia políticos que são investigados pela operação Lava Jato, como o senador Aécio Neves (PSDB) e o ex-presidente Lula (PT), e indagaram também, de forma irônica, se ele soltaria o ex-prefeito da capital paulista Paulo Maluf (PP). Gilmar Mendes, que já havia sido alvo de tomates durante uma palestra e xingado na rua em um passeio em Lisboa, capital portuguesa, acabou pedindo que a Polícia Federal investigasse quem eram seus detratores.

A senadora Gleisi Hoffmann (PT) também já foi alvo de xingamentos durante uma viagem de avião. O governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), por sua vez, sofreu com manifestações negativas enquanto fazia compras em um shopping em São Paulo. Já o tucano Aécio Neves foi hostilizado durante um passeio com a esposa e os filhos em uma praia carioca.

Diante de todas essas manifestações contra as autoridades, fica a pergunta: até que ponto o cidadão tem o direito de protestar e até onde esses protestos deixam de ser democráticos e passam a ser considerados um ato de violência?

Para o sociólogo, cientista político e professor do Cefet Moisés Augusto Gonçalves, o esculacho é um ato apropriado ao protesto de quem teve a dignidade violentada. De acordo com ele, qualquer tipo de protesto que não parta para a agressão física e que não se sustente na calúnia é digno: “O protesto que expressa a revolta das pessoas não é apenas legítimo, é necessário”.

Gonçalves explica ainda que, quando alguém ingressa no serviço público, ele se torna um servidor do Estado e, portanto, passa a ser alvo das reivindicações da sociedade. “Não há nenhuma razão para qualquer autoridade questionar isso. Aliás, eu não digo qualquer autoridade, eu digo qualquer pessoa decente. Se é uma figura pública, está exposta ao público, não para ser violentado, mas para ser cobrado. Ou então, não siga a vida pública”, analisou.

O cientista político da UFMG Felipe Nunes explica que a oposição é fundamental em qualquer processo de estabilidade democrática. Segundo ele, nesse sentido, qualquer tipo de discordância dentro do sistema legal não só é legítima como também é necessária. Entretanto, Nunes afirma que é preciso ter cautela, pois, para ele, qualquer tipo de escracho público ultrapassa essa questão da oposição.

“É preciso respeitar, acima de tudo, as pessoas que, querendo ou não, têm institucionalidade para estar onde estão, ou foram eleitas de forma legítima. É preciso ponderar esses dois lados. Uma coisa é oposição, manifestar opinião, mostrar que o ponto de vista é diferente. Outra coisa é fazer uma campanha de escracho e de humilhação. Isso não me parece ser adequado nem desejável para uma sociedade moderna ocidental”, avaliou.

A professora de direito da UFMG Marcella Gomes defende que o cidadão tem o direito de protestar desde que assuma a responsabilidade das consequências de seu ato na esfera privada do outro. No caso de figuras públicas que exercem um mandato, ela avalia que existe uma elasticidade, uma vez que elas estão nos representando em uma função política e, nessa função, respondem pela população. “Por esse ponto de vista, existe um certo direito de cobrança, de estar insatisfeito e de querer ver dessas autoridades respostas pelos seus atos enquanto políticos”, explica.

Marcella destaca, contudo, que as manifestações devem ocorrer em espaços como Assembleias Legislativas, reuniões públicas e no Congresso Nacional, por exemplo. Para ela, nos espaços privados, os escrachos ultrapassam a esfera daquele sujeito. “Ali ele é um cidadão como outro qualquer, não está sujeito a ser incomodado”, declarou.
Psiquiatra diz que corrupção escancarada ‘incendeia’ cidadão
De acordo com o psiquiatra forense e diretor da Associação Médica de Minas Gerais Paulo Roberto Repsold, o ato de escrachar autoridades publicamente pode ser explicado por uma conjunção de fatores. Porém, ele destaca três mais relevantes: impunidade, revolta e publicização dos fatos do mundo político.

“Com o escancaramento dos fatos criminosos, os cidadãos estão cada vez mais indignados. A revolta latente e a certeza de que não vai acontecer nada a eles resulta no escracho quando ela se depara com o fato. É como se tivesse a gasolina e o fogo, mas eles não se encontram. No dia em que se encontram, incendeia”, diz.

O psiquiatra explicou que, para que essas manifestações públicas se concretizem e se transformem em um comportamento de grupo, é preciso que uma pessoa mais nervosa e impulsiva inicie o protesto e que outras, que também estejam insatisfeitas, sigam o movimento. “Um fator social é a questão do encorajamento, do fenômeno de massa que se dá quando alguém faz aquilo que você já quer fazer, mas que sozinho não faria, só faz porque tem mais gente fazendo”, explica.

Repsold ressalta que, diante do cenário atual do país, o brasileiro está deixando de ser pacífico. “O povo começou a reagir, a não aceitar político que rouba, e começou a se organizar politicamente. Antigamente, as pessoas pensavam assim: esse político rouba, mas faz. Agora, ninguém aceita mais esse discurso. Estamos tendo a nossa virada da passividade”, avaliou.
Mudança. Dois dias depois de um escracho em um voo comercial de Brasília para Cuiabá, no dia 27, o ministro Gilmar Mendes pegou um voo da FAB para ir até São Paulo.
“Golpista”. Em maio de 2016, o senador Aécio Neves (PSDB) foi hostilizado e chamado de “golpista” por uma mulher na praia do Leblon, Zona Sul do Rio. “Aqui a gente está vendo um golpista na praia, com os filhos. Pouco se lixando com o Brasil, que está pegando fogo. O golpista está aqui na praia, gente, olha”, disse a mulher.

“Ladrão”. O governador Fernando Pimentel (PT) foi hostilizado em um shopping de São Paulo, em dezembro de 2016. Enquanto olhava produtos de uma loja de moda masculina, ele ouviu gritos e palavras de ofensa. “Você faliu Minas e vai gastar o dinheiro aqui em São Paulo? Ladrão vagabundo”, disse um cliente do shopping. Pimentel não reagiu.
O Tempo

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