domingo, 4 de fevereiro de 2018

Autor de livro sobre a Lava Jato detalha o que o levou a escrevê-lo

Souza, que nasceu em Natal (RN), também esboça algumas das ideias contidas no tomo, entre elas a crítica que faz à noção de “homem cordial”, concebida por Sérgio Buarque de Holanda, a seu ver, matriz de preconceitos nocivos ao país.
O que mobilizou a escrita do livro “A Elite do Atraso”?
Ele é uma tentativa de reconstruir o momento atual a partir de uma perspectiva histórica de longa duração. É preciso desfazer essa bobagem de que o Brasil vem de Portugal – e não do escravismo, que não existia em Portugal – e com isso da herança maldita da corrupção só do Estado e da política. Essa leitura do Brasil foi construída na década de 30 pela elite dos proprietários de São Paulo, que havia perdido o poder político para (Getúlio) Vargas. Ela implica em estigmatizar o Estado, a política e especialmente qualquer partido de esquerda para que o Estado possa continuar sendo alvo da rapina dessa elite por meio de isenções fiscais e controle do orçamento público. Essa é a corrupção real que permanece invisível por conta da corrupção dos tolos, construída para imbecilizar o povo e que é distribuída pela imprensa que é braço e parte dessa mesma elite. O mercado, que é quem assalta o povo por meio de juros escorchantes embutidos em todos os preços de tudo que pagamos e de uma dívida pública nunca auditada cheia de fraudes e títulos falsos, pode aparecer como mundo divino da honestidade e do trabalho. Essa é a grande mentira brasileira criada por intelectuais e depois distribuída nas escolas, universidades e pela mídia. Como toda mentira que quer ser bem sucedida, ela tem um grão de verdade: é claro que se rouba também na política, mas é o roubo do “aviãozinho do tráfico”, as sobras e as gorjetas do mercado para os políticos que são comprados pelo mercado para passar, por exemplo, as “reformas” atuais, todas contra o povo. Como nos contam essa história desde pequenos, acreditamos nela. O instante atual permite que recuperemos nossa inteligência. Está tudo à mostra agora. Só não ver quem não quer. Além da estigmatização da política, que só é boa para quem quer eliminar a mediação democrática e ganhar mais dinheiro com isso, se construiu um liberalismo conservador e antipopular baseada na ideia do brasileiro como vira-lata e corrupto por natureza e uma idealização dos norte-americanos – que montaram o maior esquema de corrupção da história com a desregulação do mercado financeiro – como povo divino, honesto e sem defeitos. Uma bobagem completa como o livro mostra, bobagem esta perfeita para os donos do mercado – os proprietários – cuja corrupção fica invisível pela localização absurda de uma elite do mal apenas no Estado. É isso que legitima os golpes de Estado dos últimos cem anos sempre que o Estado sirva, por pouco que seja, também à população como um todo e não apenas para os proprietários.

No livro, você questiona ideias como a noção de “homem cordial”, elaborada por Sérgio Buarque de Holanda. Por que esse pensamento, a seu ver, precisa ser superado?
Porque ele animaliza o brasileiro, ao ligá-lo às emoções e ao corpo. No Ocidente existe uma hierarquia, consolidada pela ação do cristianismo durante milênios, que diz que tudo que é nobre vem do espírito, como a inteligência e a moralidade, e tudo que é inferior vem do corpo, ou seja, as emoções incontroláveis e o sexo. A intelectualidade brasileira criou a inferioridade do brasileiro frente à cultura norte-americana que é divinizada pelos liberais brasileiros como um paraíso na terra. É essa mentira e essa bobagem monstruosa que tem que ser criticada e desfeita. É ela que permite dizer, sem ser ridicularizado, que é melhor entregar a Petrobras e nossos recursos naturais aos estrangeiros por que somos corruptos, e eles, honestos.

Que impacto isso têm no cenário nacional?

Ora, ele cria a ilusão que nossos problemas decorrem da forma do Estado e de sua corrupção como se nos Estados Unidos fosse diferente. Como se lá também o Estado não fosse comprado pelas grandes corporações. Toda corrupção real é sempre advinda da compra da política pelo mercado. O resto é só mera consequência disso. Na verdade, nossos problemas decorrem da desigualdade e do ódio ao pobre que herdamos da escravidão que nunca foi criticada efetivamente entre nós. A corrupção do Estado, que é real, mas é muito menor que a corrupção do mercado em isenções fiscais, sonegação, juros absurdos etc., é usada para tornar invisível não só a corrupção real dos juros maiores do mundo e da dívida pública que é uma fraude contra a sociedade, mas também para tornar secundário o ódio ao pobre e a desigualdade perversa brasileira. Hoje fica claro que a classe média que saiu as ruas contra o PT não foi contra a corrupção. Se fosse, a corrupção de outros partidos, hoje muito mais visível e comprovada inclusive com alusões a assassinatos como prática normal, teria que ter mandado muito mais dessa gente à rua. Ninguém foi. Então, resta a pergunta: se não foi por conta da corrupção, de onde vem o ódio de parte da classe média mais conservadora ao PT? Ora, a mesma classe média que foi às ruas em um arremedo de “povo” era a mesma que reclamava dos pobres em aeroportos e em shopping centers antes restrito às classes médias. Era o pessoal que odiou essa coisa de pobre estudar em universidade, afinal o privilégio da classe média é baseado no acesso restrito a ela do conhecimento altamente valorizado das universidades, das línguas estrangeiras e tudo o mais que confere alto salário e prestígio. Quando a grande imprensa, que é tanto parte quanto instrumento da elite do saque, começa ilegal e seletivamente a publicar denúncias só contra o PT – e isso foi assim três anos seguidos entre 2013 e 2016 –, a fração protofascista da classe média abraçou a ideia com alegria. Primeiro deu a ela a falsa impressão de que ela é protagonista de alguma coisa na vida e depois o pretexto perfeito para vestir de dignidade seu ódio secular ao pobre que estava ascendendo um pouco de vida. Ao invés de ser visto como o canalha que odeia os pobres e os mais frágeis passa a ser visto como herói da moralidade, como defensor da limpeza ética nacional. Esse é o método de todo fascismo na história: travestir o ódio inconsciente em falsas bandeiras moralistas. Ou seja, serve para racionalizar e justificar o ódio.

No título, você reivindica o reconhecimento do que significou séculos de escravidão no Brasil. Por que essa perspectiva, a seu ver, é mais relevante que outras análises para se compreender os conflitos do país? 

As ideias que sempre serviram para explicar o Brasil foram patrimonialismo, personalismo e populismo. É tudo bobagem e é tudo mentira. É isso que o livro mostra em detalhe e creio que de modo convincente para qualquer leitor que ame a verdade. Patrimonialismo é mentira porque quem rouba é o mercado que compra a política e o judiciário e a imprensa para roubar de verdade e ter uma imprensa para distorcer a realidade para o povo. Um exemplo serve: a farsa da Lava Jato se vangloria de ter restituído um R$ 1 bilhão aos cofres públicos. Ora, só uma isenção fiscal de um grande banco há poucos meses atrás equivaleu a 25 Lava Jatos. Sem contar os trilhões de juros abusivos – os maiores do mundo sem razão para isso – embutidos nos preços de mercado que todos pagamos para o bolso de meia dúzia de bancos e rentistas. Quem é feito de imbecil nesta história? E porque nunca temos uma auditoria da dívida pública? Ora, porque para os especialistas a dívida pública é o roubo real com títulos falsos e fraudulentos. Mas isso não sai na imprensa. Claro, a imprensa é comprada para distorcer o mundo e ver o roubo apenas dos políticos, que ficam na realidade, com a gorjeta do saque da elite do dinheiro. Essas ideias servem para isso, para inverter e distorcer o mundo em favor do saque e da rapina da elite do dinheiro.
O Tempo

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