sábado, 10 de fevereiro de 2018

Stealthing: a prática sexual que que coloca em risco as mulheres

“Eu estava ficando com um colega da mesma universidade. Fomos para o quarto e entreguei a camisinha. Ele colocou. Quando eu estava de costas, já no meio da relação sexual, olhei para trás e observei que ele a tinha tirado. Pedi que colocasse outra e continuamos. Ele fingiu ter sido um acidente”, relata a funcionária púbica Patrícia*, 35. Quando o abuso aconteceu, ela não sabia que se tratava de um crime.
Chamada de “stealthing” (dissimulado, em tradução livre do inglês), essa violência pode acontecer com pessoas de ambos os sexos, mas geralmente é praticada por homens. A remoção do preservativo durante a relação sexual sem consentimento do parceiro ou parceira tem se tornado assunto de trocas de informações e dicas em fóruns e grupos online, mas o hábito masculino de desprezar o preservativo – e a parceira – é antigo.

Lígia*, 25, passou por situação semelhante. A violência foi praticada pelo ex-namorado. Ela conta que o diálogo funcionou até o dia em que descobriu que ele estava retirando as camisinhas durante o sexo. “Quando questionei, ele me disse que estava fazendo isso porque já tinha percebido que, às vezes, rolava o coito interrompido. Eu pirei! Senti-me uma boneca inflável que não tem direito a dar ordens sobre o próprio corpo”, diz.

Repercussão. A discussão da prática ganhou visibilidade com o estudo “Rape-adjacent: Imagining legal responses to nonconsensual condom removal” (“Análogo ao estupro: Imaginando respostas legais para a remoção não consensual de preservativo”, em tradução livre do inglês). Publicado pela Universidade de Columbia, o artigo é da advogada americana Alexandra Brodsky, que retrata casos de mulheres que sofreram stealthing.
A pesquisadora ainda expôs comentários encontrados nas comunidades e fóruns de agressores, afirmando que esses homens defendem seu “direito” de “espalhar sua semente”, dando dicas de como retirar o preservativo sem consentimento e treinando outros.
O que diz a lei. De acordo com a promotora Gabriela Manssur, do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) de São Paulo, o stealthing é crime, já que a mulher só consentiu a relação por acreditar que o parceiro estava com o preservativo. “A prática pode incorrer nos artigos 130, 131, 132 e 215 do Código Penal. Ela configura crimes de relação consensual mediante fraude, oferecendo risco de contágio venéreo, moléstia grave e perigo para a vida ou saúde de outra pessoa”, explica.
Segundo a promotora, a vítima tem até seis meses depois do ocorrido para denunciar o agressor. “É claro que, quanto antes for, melhor. Vá à delegacia e faça o exame de corpo de delito, afinal direitos à saúde e à liberdade de reprodução, por exemplo, estão sendo violados”, orienta.
* Nome fictício
Justiça
Punição. O único caso conhecido de condenação por stealthing aconteceu em janeiro de 2017, na Suíça. Após ser denunciado, o agressor foi condenado pela Justiça por estupro.

 

Sequelas do abuso podem ser, em geral, físicas e psicológicas

Retirar o preservativo durante o ato sexual pode parecer irrelevante, mas as marcas deixadas nas vítimas, geralmente, são profundas: no corpo e na mente. Fisicamente, o risco existe para os dois lados envolvidos, afirma a ginecologista Débora Magalhães.
“Existe a possibilidade de se contrair alguma doença sexualmente transmissível, além de, em um segundo momento, acontecer uma gestação indesejada”, esclarece.
A médica afirma que a liberdade do corpo também não é respeitada. “A pessoa está permitindo o outro a acessar o corpo dela de uma forma vulnerável, e você está indo contra o combinado, por uma sensação de prazer e poder”, destaca ainda a ginecologista.
E é justamente essa quebra de confiança que pode trazer sérias consequências psicológicas para a vítima. “Dependendo de como aconteça, a invasão cometida pelo homem pode causar transtornos como ansiedade, depressão, síndromes das mais variadas. Esse constrangimento pode impactar, inclusive, nas futuras relações da vítima, que pode até evitar qualquer tipo de contato amoroso com novos parceiros”, esclarece o psicólogo Fellipe Lattanzio, mestre em psicanálise pela UFMG.
As causas do abuso, segundo o especialista, residem, em sua maior parte, na cultura machista da sociedade. “São homens que acreditam ter direito sobre o corpo da mulher ou até mesmo que se assustam com a liberdade sexual da parceira e decidem, como demonstração de domínio, praticar o stealthing”, pondera Lattanzio.
O Tempo

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