sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Como o patriarcado se impôs ao matriarcado há mais de 10 mil anos

O TEMPO

Leonardo Boff


PUBLICADO EM 16/02/18 - 03h00
É difícil rastrear os passos que possibilitaram a liquidação do matriarcado e o triunfo do patriarcado, há 10 mil, 12 mil anos. Mas foram deixados rastros dessa luta de gêneros. A forma como foi relido o pecado de Adão e Eva nos revela o trabalho de desmonte do matriarcado pelo patriarcado. Essa releitura foi apresentada por duas conhecidas teólogas feministas, Riane Eisler e Françoise Gange.

Segundo elas, se realizou um processo de culpabilização das mulheres no esforço de consolidar o domínio patriarcal. Os ritos e símbolos sagrados do matriarcado são diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior.

O atual relato do pecado das origens, acontecido no paraíso terrenal, coloca em xeque quatro símbolos fundamentais da religião das grandes deusas-mães.

O primeiro símbolo a ser atacado foi a própria mulher (Gn 3,16), que na cultura matriarcal representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal, ela simbolizava a Grande Mãe, a Suprema Divindade.

Em segundo lugar, desconstruiu-se o símbolo da serpente, considerado o atributo principal da Deusa Mãe. Ela representava a sabedoria divina que se renovava sempre, como a pele da serpente.

Em terceiro lugar, desfigurou-se a árvore da vida, sempre tida como um dos símbolos principais da vida. Ligando o céu com a terra, a árvore continuamente renova a vida, como fruto melhor da divindade e do universo. Gênesis 3,6 diz explicitamente que “a árvore era boa para se comer, uma alegria para os olhos e desejável para se agir com sabedoria”.

Em quarto lugar, destruiu-se a relação homem-mulher que originariamente constituía o coração da experiência do sagrado. A sexualidade era sagrada, pois possibilitava o acesso ao êxtase e ao saber místico.

Ora, o que fez o atual relato do pecado das origens? Inverteu totalmente o sentido profundo e verdadeiro desses símbolos. Dessacralizou-os, diabolizou-os e os transformou de bênção em maldição.

A mulher será eternamente maldita, feita um ser inferior. O texto bíblico diz explicitamente que “o homem a dominará” (Gen 3,16). O poder da mulher de dar a vida foi transformado numa maldição: “multiplicarei o sofrimento da gravidez” (Gn 3,16). A inversão foi total e de grande perversidade.

A serpente é maldita (Gn 3,14) e feita símbolo do demônio tentador. O símbolo principal da mulher foi transformado em seu inimigo fidagal: “porei inimizade entre ti e a mulher... tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).

A árvore da vida e da sabedoria vem sob o signo do interdito (Gn 3,3,). Antes, na cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de sabedoria. Agora, comer dela significa um perigo mortal (Gn 3,3), anunciado por Deus mesmo. O cristianismo posterior substituirá a árvore da vida pelo lenho morto da cruz, símbolo do sofrimento redentor de Cristo.

O amor sagrado entre o homem e a mulher vem distorcido: “entre dores darás à luz os filhos; a paixão arrastar-te-á para o marido e ele te dominará” (Gn 3,16). A partir de então se tornou impossível uma leitura positiva da sexualidade, do corpo e da feminilidade.

Aqui se operou uma desconstrução total do relato anterior, feminino e sacral. Apresentou-se outro relato das origens, que vai determinar todas as significações posteriores. Todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico, antifeminista e culpabilizador.
O Tempo

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