sexta-feira, 4 de novembro de 2016

MP vê acordo entre governos e empresas como nova tragédia

Próximo a completar um ano do desastre de Mariana, na região Central de Minas, mais de 3.000 ações – a grande maioria individuais – contra a Samarco estão paradas, conforme o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O acordo entre a mineradora e suas controladoras, Vale e BHP Billiton, com a União e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo está suspenso após questionamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e poucas reparações ambientais foram realizadas. Nesse cenário, os envolvidos nos impactos de rompimento da barragem de Fundão se veem em nova tragédia, desta vez, processual.

O acordo entre os entes federativos e a mineradora foi assinado em março deste ano, em Brasília, a mais de mil quilômetros das cidades afetadas. A promessa era que o documento agilizasse as ações de recuperação e evitasse brigas judiciais, com previsão de investimento de R$ 20 bilhões em 20 anos. Hoje, porém, o que se vê é o contrário. Mesmo com o acordo suspenso liminarmente, a Samarco tem utilizado o fato de o STJ ainda não ter decidido sobre o mérito da validade do documento, para travar as demais ações propostas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

Antes de serem julgados pela Justiça de Minas Gerais, os processos têm sido enviados para a Justiça Federal, diante de pedidos apresentados pela Samarco, que questiona a competência dos tribunais de Minas para analisar as ações, procedimento que tem demorado mais de oito meses. “Enquanto os tribunais discutem a competência, os atingidos padecem, e o rio Doce agoniza”, reclama o coordenador do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais (Nucam) do MPMG, promotor Carlos Eduardo Ferreira.

Ele explica que a postura da Samarco, até aqui, foi a de realizar as ações somente após determinação judicial, como foi o caso das medidas para conter o vazamento e fazer a dragagem na usina de Candonga. Ferreira alega que o acordo só serviu, até agora, para blindar a empresa, que se esquiva das ações judiciais e transfere a responsabilidade sobre a recuperação ambiental para a Fundação Renova. A entidade foi criada para executar as ações e, conforme o promotor, é controlada pelas mineradoras.

“A primeira tragédia foi o rompimento de Fundão, a segunda, foi o acordo, feito sem ouvir o Ministério Público, os moradores e os prefeitos afetados. O documento prevê que as mineradoras que causaram os danos seja quem defina o que tem que ser feito, qual o valor a ser investido e quais áreas serão prioritárias”, critica. A alegação de Ferreira é feita com base na formação do Conselho de Administração da Fundação Renova. São sete membros no órgão, dos quais seis são indicados pelas mineradoras, e apenas um, pelo Comitê Interfederativo, formado pela União e pelos Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais. O conselho fiscal, que tem a atribuição de auditoria interna e fiscalização da gestão dos recursos, também tem maioria de representantes das mineradoras.

Atingidos. A questão processual também chegou a afetar as ações para garantir os direitos dos atingidos. O imbróglio só foi superado porque o STJ decidiu que, nas questões sociais, a Justiça Estadual tinha competência para analisar os processos.

“Isso foi fundamental para garantir os direitos aos atingidos. A Samarco se recusou a firmar o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), e tudo que conseguimos foi mediante determinação da Justiça”, afirmou o promotor de Direitos Humanos de Mariana, Guilherme Meneghin. Ele destaca que, apesar dos entraves, conseguiu quebrar paradigmas judiciais, com o pagamento de indenização antecipada. As famílias que tiveram suas casas destruídas conseguiram o pagamento de R$ 20 mil antes do julgamento do processo, o que foi inédito.

Defesa. O Presidente da Fundação Renova, Roberto Silva Waack, defende o acordo. Ele diz que, independentemente da homologação da Justiça, o documento é válido. Porém, ele destaca que seria necessário garantir a homologação para evitar mais disputas judiciais e agilizar as ações.

“O ideal é que haja harmonia maior entre diferentes órgãos, esse impasse gera ruídos, gera dúvidas, faz parte do ambiente jurídico. Temos que conviver e respeitar. Esse é o ambiente jurídico que prevalece. À medida que as ações forem implementadas e perceberem que elas estão ocorrendo, talvez esse nível de tensão entre as partes seja resolvido”, finalizou
MINIENTREVISTA
Guilherme Meneghin
Promotor de Direitos Humanos de Mariana
Nesse ano, qual foi a maior dificuldade para garantir os direitos dos atingidos?

A Samarco se recusou a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), e tudo que conseguimos foi mediante ação judicial. Tivemos muita dificuldade quando, a partir de fevereiro, os processos foram remetidos à Justiça Federal. Só com o retorno do processo para a Justiça de Minas, em junho, conseguimos avançar. Quando comuniquei aos moradores do retorno do processo para cá, muitos choraram, porque isso renovou a esperança de que serão ressarcidos. Foi muito importante a união dos moradores.

Quais são os desafios a partir de agora?

Dividimos a reparação em quatro pontos. O primeiro são os direitos emergenciais para dar dignidade às pessoas. Essa etapa foi concluída. O segundo está em curso, que é a reparação financeira do patrimônio perdido. O terceiro é a reconstrução das comunidades, que será concluída em 2019, segundo promessa da Samarco. Por fim, estão os danos morais, que talvez seja a questão mais relevante. Não houve danos só na questão social, com reparação financeira. Foram afetados sua forma de interação social, o seu modo de vida, e isso tem que ser reparado.

MINIENTREVISTA

Carlos Ferreira
Promotor de Justiça de Meio Ambiente

Hoje, quase um ano após a tragédia, temos garantia de que os danos ambientais serão reparados?

Ainda há muita incerteza sobre isso. O que a gente tem é um cenário caótico de pressão para a retomada da operação (da Samarco). O que a mineradora está fazendo agora é a mesma maquiagem que foi feita com a barragem de Fundão. Durante anos, a empresa afirmou que a estrutura era estável e segura, quando sabiam dos problemas. Agora, a Samarco divulga relatórios com ações cosméticas de uma recuperação que não foi feita. Recuperação ambiental não é plantar grama em cima da lama. O pouco que o rio recuperou foi graças ao próprio poder da natureza de se recuperar.

Por que o acordo é prejudicial nesse cenário?

Ele funciona para blindar a Samarco. Ela e suas controladoras, a Vale e a BHP Billiton, são quem definem as ações a serem implementadas. Por meio da Fundação Renova, elas têm o poder de determinar o que será feito primeiro, qual o valor que será investido e quais cidades serão contempladas. O causador da tragédia é quem toma as decisões. Isso abre brecha até para retaliações a prefeitos que se posicionarem de forma mais dura contra as empresas.
O Tempo

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