domingo, 19 de novembro de 2017

Pedro Cardoso comenta sua estreia na literatura e dificuldades na TV

Há dois anos e meio você está morando em Portugal. Esse deslocamento interferiu na escrita de “O Livro dos Títulos”?
Certamente. Eu acho que, às vezes, quando nos afastamos um pouco da urgência dos acontecimentos, a gente consegue ter uma visão um pouco mais nítida do que está acontecendo. Eu estava fora do Brasil quando a operação Lava Jato foi ganhando uma volta muito poderosa para o bem e para o mal. As forças se desorganizaram, e o impeachment da Dilma foi articulado, na minha opinião, por pessoas que não tinham nenhum interesse no bem do Brasil, mas apenas em ocupar o poder. Acho que um dos grandes responsáveis por isso é o Aécio Neves. O que não quer dizer que eu ache que o governo do PT (Partido dos Trabalhadores) merecesse o mandato, mas eu também acredito que o impeachment foi feito por essas razões, com uma desonestidade que conduziu o país a uma situação dificílima. Eu não estou defendendo o PT, estou dizendo que quem fez o impeachment não o fez por amor ao Brasil. Os crimes do PT estão aí, sendo investigados, alguns já foram comprovados, e longe de mim ficar fazendo apologia ao PT, mas as forças que tiraram o PT do poder não fizeram pelo bem do Brasil e o deixaram num estado de desordem perigosíssimo.

Essa instabilidade está presente nessa ficção?
A razão que me levou a escrever esse livro foi uma enorme ansiedade de tentar contribuir para o apaziguamento da alma brasileira, porque com esse tumulto é muito difícil que o povo brasileiro consiga se organizar para se liberar de uma oligarquia econômica e de uma classe econômica individualista, ligada a essa oligarquia, cuja intenção é roubar diariamente o povo brasileiro. Recentemente, eu vi uma operação dentro da Assembleia Legislativa do Rio tentando coibir uma investigação da polícia federal. Ou seja, o jogo político continua muito pesado. Eles ainda acreditam que vão conseguir enganar 200 milhões de brasileiros.

Esses conflitos abordados por você deram origem a que tipo de narrativa?

O livro é uma fantasia. Eu não tenho muita afeição pelo realismo, tenho mais gosto e tendência para as histórias simbólicas. Então, meu livro é preenchido de imagens que refletem as muitas vozes que estão desorganizadamente gritando no Brasil. Então, o meu livro é absolutamente ligado ao momento atual, o que confere a ele um caráter quase jornalístico, mas minha narrativa é totalmente ficcional.

A trama passa-se apenas no Brasil ou abarca também Portugal?
Meu livro se passa no Brasil e num pequeno momento a história se passa também em Portugal, mas ela é, sobretudo, a respeito do Brasil e de questões universais. Afinal, o que aflige o país hoje também se encontra em outros lugares do planeta. O desenvolvimento da democracia, por exemplo, é um assunto internacional e uma preocupação de toda a humanidade. O que acontece no Brasil, onde forças políticas e econômicas muito conservadoras querem impedir que o povo brasileiro tome o protagonismo de sua história, também acontece em outros lugares. Portanto, embora a história seja especificamente sobre o Brasil, ela se comunica com uma luta histórica da humanidade em busca de uma democracia plena.

Atualmente você se vê mais como escritor?
Eu continuo achando que sou um ator profissional e um escritor amador. Eu não me nomearia um escritor profissional. Isso seria uma irresponsabilidade. É mais provável que eu continue sendo ator e eventualmente escritor. O livro foi um acidente geográfico, não sei bem como isso me aconteceu.

No Brasil, você optou por vender seu livro pessoalmente nas livrarias, sem anunciar lançamentos. Por que essa abordagem?
Porque eu tenho horror ao mundo das celebridades. A ideia de ser classificado nessa categoria de pessoa é uma coisa terrível; isso afasta o artista do público e cria a ilusão de que os artistas são pessoas que são mais importantes. Então, eu não queria fazer uma festa para pessoas famosas e para dar matéria em revistas que se dedicam a cobrir a vida das celebridades. Eu queria ir ao encontro do público, e não ficar esperando que o público viesse ao meu encontro. O meu grande sonho era armar uma barraca numa feira de rua e vender o meu livro igual ele fosse uma fruta ou verdura. O livro tem que chegar no público, e não adianta dizer que o Brasil não lê. Ele não lê porque o livro é caro e está em um ambiente que o povo não se sente convidado a entrar.

Depois do fim de “A Grande Família”, você criou o projeto de uma série chamada “Área de Serviço”? Por que ela não emplacou?
A TV está tomada pela obsessão de vender pornografia, e o meu projeto não contemplava esse desejo do empresariado. Basta ligar a televisão para ver isso. O que eu digo não tem nada a ver com essa onda moralista, alucinada que também tomou conta do Brasil. Não me enquadrem ao lado de pessoas que veem o diabo na felicidade, na alegria e no sexo. Eu vejo o diabo na exploração comercial da liberdade do artista enquanto seu próprio. Não vejo o diabo na espontaneidade da vida erótica das pessoas.

O que o levou a conceber esse trabalho?
Existe uma história afetiva do Brasil e ela atravessa as questões sociais. Eu tenho muitos amigos que são oriundos de classes sociais diferentes da minha. Eu nasci na zona Sul do Rio de Janeiro, numa família de classe média e conheci o Brasil por meio das amizades que eu desenvolvi com pessoas nascidas em outras classes tanto acima quanto abaixo da minha. Nessa série (que gira em torno de um empresário rico cuja relação com os empregados o leva a conhecer melhor o país), eu queria contar a história afetiva que atravessa as diferenças entre as classes brasileiras, e mostrar como é importante que elas convivam e se conheçam. Acho que a partir disso, nós podemos criar um país que pertence a todos. Essa era a minha intenção.

As peças de teatro que você vem concebendo também abordam conflitos e desafios ligados à realidade brasileira, como seu primeiro romance?

Sim, eu tenho uma peça que escrevi chamada “O Fantasma de Chico Morto” que trata da história de Chico Mendes. Mas eu também não encontrei nenhum apoio para fazer um espetáculo sobre esse assunto, entende? O apoio no Brasil está direcionado a produtos culturais pouco ligados à alma brasileira.

O desinteresse em relação à questão do meio ambiente não é preocupante num momento em que justamente discute-se o impacto da flexibilização de leis reguladoras das reservas naturais do país?

Ainda mais com o governo atual, que tentou debilitar a fiscalização do trabalho análogo à escravidão. Um governo não está sozinho, ele sempre tem um grupo de homens ricos que o apoiam e sustentam. São esses mesmos homens que escolhem o que fazer com o incentivo fiscal por meio das leis de incentivo à cultura, que acabam reféns dos que representa apenas uma mínima parcela da população brasileira.
O Tempo

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