domingo, 19 de novembro de 2017

O fascinante mundo das formigas

O TEMPO

Laura Medioli
PUBLICADO EM 19/11/17 - 04h30
Hoje, no quintal de casa, quase atropelei uma tanajura.

– Uau! Elas voltaram! – disse com conhecimento de causa, afinal, de formigas entendo bem e há anos não via uma tanajura de verdade, com seu traseiro e ferrões avantajados, tão presente na minha infância.

E me abaixei para vê-la direito, como uma preciosidade perdida no decorrer dos anos. Imediatamente recordei-me dos meus formigueiros particulares, em que eu alimentava centenas de insetos com folhas de roseiras, dentro de um vidro industrial de maionese.

Lembro-me do jardineiro, seu Raimundo, que, ao descobrir um caminho de saúvas, logo providenciava veneno para matá-las na origem, antes que acabassem com o jardim. Era uma luta constante, pois, ao se exterminar um formigueiro, rapidamente aparecia outro.

Alguns destes foram salvos por mim. Nem sei bem como descobri a possibilidade de criar formigas em vidros gigantescos que adquiria no Mercado Central. Ver de perto o funcionamento de um formigueiro era uma coisa tão fantástica que numa feira de ciências, promovida na escola, fui a vencedora. Além do formigueiro, peguei emprestado com meu tio Angelo Machado, cientista, escritor, ecologista e o maior colecionador de libélulas do mundo, parte de seu “acervo” de insetos, incluindo borboletas, besouros grandes e estranhos e outros seres voadores ou rastejantes, provenientes de várias partes do planeta. Não tinha como não ser premiada, tamanha a riqueza de minha coleção e da inusitada criação de saúvas.

Seu Raimundo era quem me ajudava na empreitada. Um senhor tranquilo, de voz mansa, que entendia tudo de formigas. E era com ele que eu saía à busca de formigueiros. Eu com meu vidro, e ele com a enxada.

Ao localizarmos o morrinho típico de terra, às vezes “morrão”, dávamos início à retirada. Era necessário cavar mais de um metro para encontrar a rainha e seus ovos, fungos, operárias e todo o universo “formiguívero” do local. Claro, éramos picados, mas isso já fazia parte da programação.

Uma vez entraram tantas na calça do seu Raimundo que ele só não ficou pelado na minha frente por questão de respeito. Lembro-me do homem pulando, dando tapas na calça surrada, apertando sob o jeans os bichos enfurecidos.

Para quem não sabe, a tanajura é a provável futura rainha de um formigueiro. Digo provável porque, na maioria das vezes, elas morrem antes, devoradas por pássaros ou algum inseto. Diria que mais de 90% das tanajuras não chegam a “se coroar”.

E me pergunto: por que num formigueiro, com milhares de formigas, nascem poucas tanajuras? Simplesmente, porque já estavam predestinadas desde quando eram ovos. A elas foram reservados os melhores fungos para alimentá-las.

Ao crescerem, criam asas e, na primavera, voam para se acasalar. Uma tanajura pode viver até 20 anos, enquanto o macho, após o acasalamento, mal dura um dia.

Depois, perdem suas asas, e as que sobrevivem cavam um buraco na terra, dando início a um formigueiro, onde será a rainha, botará seus ovos, originando filhas operárias, que se dividem em cortadeiras, soldadas, lixeiras e enfermeiras, além das formigas-macho, chamadas de “bitus” ou “aleluias” (cujos ovos não são tão cuidados). E aquelas especiais, criadas a “fungo de ló”, que se transformarão em tanajuras, reiniciando o ciclo.

E eu, no meu vidro de maionese, observava tudo. Alimentava-as com folhas de roseiras e, em pouco tempo, via-as formar os diversos túneis e os locais que eu chamava de “salas”, onde armazenavam as folhas que se transformariam em fungos que, por sua vez, alimentariam a tropa. Lembro-me de que os fungos se pareciam com cinzas de cigarro, grudados uns aos outros. Aos machos era destinada pouca quantidade, e às futuras rainhas, uma maior e selecionada qualidade. Já para as cortadeiras, que trabalham dia e noite carregando em suas costas, proporcionalmente, mais que o dobro de seu peso, uma quantidade normal. Assim como as enfermeiras, que cuidam dos ovos e dos casulos, ajudando a rainha a tratar dos filhotes. As soldadas, guardiãs dos formigueiros contra invasores, e as lixeiras, responsáveis pela limpeza, levando o lixo e formigas mortas para as galerias mais fundas, evitando doenças na comunidade. Uma sociedade cujo funcionamento é perfeito e fascinante, reinado por uma inteligência coletiva que não sei como explicar.

Nem preciso dizer que eu as vigiava o tempo todo. A cada momento, um novo túnel, novas galerias, ovos que despontavam e larvas transparentes, chamadas “pupas”. E me encantava com tudo isso. Tanto que à noite levava o vidro para o meu quarto e, sob a luz do abajur, em vez de ler livros, via formigas.

Adulta, penso no absurdo da coisa. Jamais repetiria a maldade de tirá-las do seu ambiente para colocá-las em um vidro vazio de maionese. Por outro lado, penso nas tantas formigas que salvei do veneno mortífero do seu Raimundo.

Hoje, senti-me feliz por ter visto uma tanajura. Espero que faça parte das 10% que sobrevivem. Mas desejo, sinceramente, que ela fique beeeem longe do meu jardim!
O Tempo

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